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    Aurora Miranda, ‘A Outra Pequena Notável’: os 110 anos de uma grande estrela da nossa música popular

    Fernando Krieger

    tocar fonogramas

    Ela tinha um estilo todo diferente. E eu não, eu era mais... pacificazinha, sabe?
    (Aurora Miranda em 1987 – Documentário “Aurora Miranda, a notável irmã de Carmen”, 2002)

    “Aurora tinha à sua disposição todos os grandes compositores e letristas do mercado. Aparecia com destaque nos filmes, era disputada pelas estações de rádio, fizera centenas de shows em teatros e cassinos, com ou sem Carmen, e já experimentara a sensação de engarrafar o trânsito, passar no meio de multidões que a adoravam e despertar paixões como cantora e como mulher. E era também uma profissional completa”, resume Ruy Castro em “Carmen: uma biografia” (Companhia das Letras, 2005). Grande estrela da nossa música popular, Aurora Miranda da Cunha, cujos 110 anos de nascimento celebramos neste mês de abril, no entanto viveria basicamente à sombra da irmã famosa – e por opção própria.

    Postura que já se notava no início da sua brilhante carreira. À revista O Cruzeiro de 21/10/1933, ela explicou a Zolachio Diniz como havia entrado na vida artística: “Meteram-me na cabeça que eu também dava para o negócio. E que devia gravar. Carmen levou-me para a célebre experiência. Agradei aos entendidos. E me convenci disso: já havia na família a joia verdadeira, a Carmen. Por uma questão de princípios e de vaidade, era também necessário que houvesse a joia da Sloper [OBS: famosa loja de bijuterias do Centro do Rio de Janeiro]. E aqui estou eu...”.

    O redator da matéria publicada tempos depois (02/03/1935) no mesmo O Cruzeiro observou: “Aurora Miranda não fala de sua personalidade para poder ficar todo o tempo rendendo gratidão à sua irmã, a quem diz ser sua orientadora. Mas, enquanto ela fala, a gente fica cismando nos seus olhos negros e grandes, onde existe um mundo de sinceridade, e no seu sorriso, um sorriso triste que está cheio de doçura (...)”.

    Como lembra Ruy Castro: “O futuro seria ainda mais injusto para com ela, reduzindo-a à condição de irmã de Carmen e se esquecendo de que, com ‘Cidade maravilhosa’, de André Filho, Aurora sempre teria um nicho só para ela na história. Mas ela própria contribuiria para esse esquecimento, nas centenas de vezes em que silenciaria sobre si mesma para falar sobre a irmã”. Aurora basicamente passaria a vida se colocando como coadjuvante da história de Carmen Miranda, que foi também sua melhor amiga, confidente e incentivadora – a primeira a notar o enorme potencial da mana, seis anos mais nova do que ela.

    Talento não faltava à jovem que veio ao mundo num sobrado – em cima de uma serraria – na Rua da Candelária, Centro do Rio, em 20/04/1915, filha dos portugueses José Maria Pinto da Cunha e Maria Emilia de Barros Miranda. Antes vieram Olinda, Maria do Carmo (Carmen), Amaro (Mario) e Cecilia; o caçula, Oscar (Tatá), nasceu já na Rua Joaquim Silva, na Lapa, para onde a família havia se mudado no mesmo ano em que nasceu Aurora. Aos dez, a menina foi morar com a família na Travessa do Comércio 13, colada à Praça 15, entre o Arco do Telles e a Rua do Ouvidor.

    Foi nesse endereço que Josué de Barros ensaiou Maria do Carmo – futura Carmen Miranda – para a sua primeira apresentação, num show beneficente que aconteceria no início de 1929 no Instituto Nacional de Música, na Rua do Passeio. No dia do evento – como mostra a fotografia publicada na revista O Violão de fevereiro de 1929 – estavam presentes, entre outros, Breno Ferreira, Josué de Barros e seu filho Betinho, Ernesto Nazareth (que aparece entre Mário Cunha, namorado de Carmen, e Anibal Duarte, responsável pelo convite a Carmen e por apresentá-la a Josué) e dois de seus irmãos, Oscar e Aurora – esta, aos 13 anos, posou ao lado de Carmen, ambas empunhando violões. Aurora chegaria a ter aulas do instrumento com Patricio Teixeira, cantor, compositor e exímio violonista, que em diversas ocasiões apontou a menina como tendo sido uma de suas alunas.

    “Aurora era morena, olhos vivos, belos dentes, cabelo farto e cacheado. Era também esportiva: fazia ginástica, jogava vôlei, nadava e ia muito à praia. Mas nada disso a fez crescer muito, porque tinha a mesma altura de Carmen, 1,52 metro”, descreve Ruy Castro, acrescentando que, no meio artístico – onde a irmã famosa já então reinava absoluta depois do estrondoso sucesso de “Taí” em 1930, história contada neste post –, Aurora passou a ser cada vez mais conhecida “por ser, desde cedo, a sombra de Carmen nas idas à rádio ou à gravadora – não apenas para fazer companhia à irmã, mas para participar de um coro ou coisa assim. Era evidente que havia uma carreira musical no seu horizonte”.

    Carreira que a menina-moça provavelmente não fazia questão de ter, mas para a qual foi praticamente empurrada por Carmen e Josué, que “ia à Travessa do Comércio para ensaiar Carmen e, aproveitando, ensinava também uma coisinha ou outra a Cecilia e Aurora”, conta Castro. Diz ainda que, por ser muito nova, a família decidira lançá-la profissionalmente só quando ela fizesse 18 anos. Mas Josué e Carmen resolveram não esperar: de acordo com o documentário “Aurora Miranda, a notável irmã de Carmen” (2002), de Dimas Oliveira Júnior e Luis Felipe Harazim, em 8 de abril de 1932 (às vésperas dos 17 anos) Josué a levou para cantar na Rádio Mayrink Veiga. Já Carmen, ao se apresentar em agosto num show beneficente no Cine Atlântico, em Copacabana, chamou Aurora para o evento. Estreava assim, no rádio e nos palcos, uma das mais belas vozes da nossa música popular.

    Que ganharia enfim o disco no dia 22 de maio de 1933, quando Aurora gravou sua primeira bolachinha, em dupla com Francisco Alves: de um lado a marcha “Cai, cai, balão”, de Assis Valente, e do outro o samba “Toque de amor”, de Floriano Ribeiro de Pinho. O próprio Chico promoveu a estreia oficial de Aurora como cantora ao convidá-la para cantar com ele a marcha junina no Teatro Recreio, em junho daquele ano. Em julho, novamente a chamou para dividir mais uma faixa em 78 rotações, o fox “Você só.... mente”, dos irmãos Hélio e Noel Rosa, que, segundo Castro, “se tornaria um dos discos mais tocados de 1933. Com apenas dois meses de carreira, Aurora emplacara dois sucessos. E, naquele ano, ainda haveria um terceiro e mais retumbante sucesso: a marchinha ‘Se a Lua contasse’, de Custódio Mesquita. Aurora gravou-a em outubro, a Odeon lançou-a em novembro, e o disco chegou fervendo ao Carnaval de 1934”. Aqui, Aurora divide os vocais com João Petra de Barros.

    A marchinha surgiu, segundo Castro, “Numa festa em noite de Lua cheia, na casa dos pais de Custódio Mesquita, nas Laranjeiras (...)”. Um dos convidados, o radialista César Ladeira – responsável por criar cognomes para diversos artistas da época, inclusive para Carmen, apelidada por ele de “A Pequena Notável” – “enfurnou-se pelo jardim com uma garota e sumiu por algum tempo. Quando reapareceu com ela, passou por Custódio, que fez o comentário velhaco: ‘Se a Lua contasse...’”. Do outro lado do disco vinha um ótimo samba de Benedito Lacerda, “Alguém me ama”.

    Por coincidência, logo após o lançamento da marcha, Aurora começou a namorar seu inspirador, César Ladeira. Que não foi feliz ao cunhar para ela o apelido de “O Micróbio do Samba” – de acordo com Castro, “querendo dizer que ela era contagiosa”. Acabaria por fim, segundo o biógrafo de Carmen, chegando “à formulação óbvia e perfeita para Aurora”: “A Outra Pequena Notável”. Esta, de temperamento discreto, teria entre 1934 e 1935 “um namoro quase secreto” com o próprio Custódio Mesquita, de quem se tornaria a principal intérprete, levando ao acetato 21 de suas criações, entre elas o samba-canção “Moreno cor de bronze”, um grande êxito de 1934.

    Aurora Miranda em anúncio da Rádio Mayrink Veiga. À direita, Aurora aparece ao microfone acompanhada por Pixinguinha, Luperce Miranda, Laurindo de Almeida e Luiz Americano – Revista PRAnóve, novembro de 1938 (Coleção José Ramos Tinhorão/IMS)

    Era tão disputada pelos compositores quanto Carmen, e não raro estes preferiam procurar Aurora para oferecer suas músicas. Foi o caso de André Filho, que em 1934 entregou a ela nada menos que “Cidade Maravilhosa” (leia aqui a saga da marcha que acabou virando o hino oficial do Rio de Janeiro). André Filho se tornaria um dos maiores “fornecedores” de Aurora e um dos seus autores preferidos, ao lado de gente da pesada como Assis Valente (“Ao romper da aurora”, parceria com Leandro Medeiros), Ary Barroso, Alberto Ribeiro (“Trenzinho do amor”, com João de Barro) e outros.

    Nos registros fonográficos feitos por Aurora nesta fase, há sambas de muita qualidade: “Sem você” (Sílvio Caldas e Orestes Barbosa), “Deixa a baiana sambar” (Portelo Juno e Valdemar Pujol), “E foi assim” (Alcebíades Barcellos, o Bide, e Leonel Azevedo), “Teus olhos” (samba-choro de Ataulfo Alves e Roberto Martins), “Acarajé... ô” (Ademar Santana e Léo Cardoso, Aurora aqui fazendo uma deliciosa dupla com Carlos Galhardo), “Você partiu” (da antológica parceria Bide-Marçal, bambas do Estácio), “Roubaram meu mulato” (um samba-canção) e “Pau que nasce torto”, ambos de Claudionor Cruz. Sobre este último, ressalta Rodrigo Faour na sua “História sexual da MPB” (Record, 2006) que ele “retratava a típica ‘mulher de malandro’, aquela que tolerava tudo de seu homem, calada e conformada” – mas aqui, ao contrário de outros sambas, ela já esboçava uma reação. O mesmo acontecia no gostoso “Não admito” (Ciro de Souza e Augusto Garcez).

    Também nas marchas, Aurora mostrava por que foi uma das maiores de seu tempo. Dois bons exemplos são “Sobe meu balão” (Portelo Juno e César Cruz) e “Onde está o dinheiro?” (José Maria de Abreu, Francisco Matoso e Paulo Barbosa) – esta, lançada por ela em 1937, faria muito sucesso quase cinco décadas depois na voz de Gal Costa, que a gravou em seu álbum “Profana” (1984).

    O cinema era o caminho natural dos astros e estrelas da música naquela época. Aurora participou de quatro filmes por aqui: “Alô, alô, Brasil”, “Estudantes”, “Alô, alô, Carnaval” – todos rodados em 1935 – e “Banana da terra” (filmado em 1938 e lançado em 1939). Destes, apenas “Alô, alô, Carnaval”, estreado em janeiro de 1936, sobreviveria até os dias de hoje. Aurora mostra toda a sua desenvoltura e simpatia diante das câmeras cantando o samba “Molha o pano” (Getúlio Marinho e Cândido Vasconcelos), acompanhada pelo regional de Benedito Lacerda.

    Também apareceu na mesma fita em um número ao lado da irmã – era comum as duas se apresentarem juntas no Brasil e até mesmo no exterior: las hermanas Miranda abafaram a banca em Buenos Aires e em diversas cidades latino-americanas entre 1934 e 1938. O número em questão tornou-se uma das imagens mais icônicas do cinema nacional: Aurora e Carmen, usando cartolas e casacas de lamê dourado (confeccionadas por Carmen), interpretam a marcha “Cantores de rádio” (João de Barro, Alberto Ribeiro e Lamartine Babo), que estaria presente no (infelizmente) único disco gravado em dupla pelas duas – do outro lado está o samba “Rancor” (Augusto Rocha e Paulo Frontin Werneck).

    Aurora e Carmen Miranda em dois cliques: à esquerda, na cena de ‘Cantores de rádio’ no filme ‘Alô, alô, Carnaval’ (imagem reproduzida da internet) e, à direita, numa fotografia da revista O Cruzeiro, edição de 20-07-1940 (Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional)

    Entre 1933 e 1940, Aurora fez mais de uma centena e meia de gravações. Só não foi a cantora que mais lançou discos no Brasil nos anos de 1930 porque esta marca pertence justamente à sua irmã. Julio Pires, em O Cruzeiro de 13/01/1940, destacava: “Aurora Miranda tem tido uma porção de sucessos. (...) Possui uma belíssima limusine, que ela mesma dirige. Faz ginástica. Levanta-se cedo. Adora um passeio de iate (...)”. No entanto, como assinala Ruy Castro, “nunca escondeu para os mais íntimos que – ao contrário de Carmen – trocaria sem piscar sua carreira por um casamento”. Que viria naquele mesmo ano.

    No final de 1938, havia recebido um trote telefônico. Por alguma razão, não desligou e acabou marcando um encontro com o rapaz, mas a coisa não passaria disso. No início de 1939 – em excursão com Carmen –, esteve em Poços de Caldas (MG), onde conheceu o banqueiro Walther Moreira Salles. Em suas idas ao Rio, o jovem passou a cortejar Aurora. Até dar o bolo num jantar marcado por ela, preferindo sair com a cantora Alzirinha Camargo. O moço do trote soube do ocorrido e voltou a procurar Aurora. Dali a algum tempo, viria o pedido de casamento – feito por ela! Aurora e Gabriel Richaid se casaram numa igreja da Urca, bairro onde ela morava, em 19/09/1940. Já então havia feito seus – por enquanto – últimos registros fonográficos: em 19/03/1940, deixou gravados três sambas e um maxixe, que seriam lançados em dois discos em maio e junho daquele ano.

    Por causa de sua temporada nos States, Aurora passaria doze anos sem gravar no Brasil. Levada por Carmen – que lá se encontrava desde maio de 1939 e onde virara uma superstar –, ela desembarcou em Nova York com Gabriel em meados de fevereiro de 1941, indo morar com a mana na residência desta na Califórnia. “No futuro, Aurora tentaria passar a impressão de que fora para os Estados Unidos para gozar dois meses de lua-de mel, e que sua carreira por lá tinha sido um produto do acaso. Mas os documentos mostram que não foi assim”, esclarece Ruy Castro. Entre julho e agosto de 1941, Aurora gravaria para a Decca seus únicos três discos de 78 rpm em terra estrangeira, num total de seis faixas: “A jardineira”, “Cidade maravilhosa”, “Aurora”, “Pastorinhas”, “Meu limão, meu limoeiro” e “Seu condutor”.

    A aventura estadunidense de Aurora deu-lhe uma certa visibilidade. Em outubro de 1941, ela inaugurou o nightclub Copacabana – que, nos anos seguintes, iria se tornar o maior de Nova York. Em 1942, excursionou por quase todo o país com a companhia itinerante de Earl Carroll. Sua maior oportunidade veio através de Walt Disney, que, aceitando a sugestão de Carmen, foi ver Aurora em cena e a chamou para um filme que seria um marco na história do cinema – e da chamada Política da Boa Vizinhança: “Você já foi à Bahia?” (“The three caballeros”), de 1944, o primeiro dos estúdios Disney a mesclar pessoas reais com personagens de desenho animado – o pato Donald, o papagaio Zé Carioca e o galo Panchito. Nele, Aurora passeia pelas ruas de Salvador, canta “Os quindins de iaiá” (assista aqui ao início e aqui ao final), de Ary Barroso, e deixa o pato Donald completamente apaixonado.

    Aurora Miranda e o pato Donald em foto de divulgação do filme “Você já foi à Bahia?”, de 1944 (reprodução da internet)

    A cena de Aurora foi filmada nos últimos meses de 1943, mas o seu teste de câmera – raridade encontrada no YouTube – foi feito, segundo Ruy Castro, em 28 de outubro de 1942. Expirado o contrato com a Disney, Castro conta que Aurora aceitou fazer pequenos papeis em outras produções, enquanto o desenho animado era finalizado. Primeiro fez uma ponta em “Conspiradores” (“The conspirators”), interpretando o “Novo fado da Severa (Ó Rua do Capelão)”; depois cantou e dançou com Billy Daniel em “Brazil”, que teve Ary Barroso como um dos compositores da trilha sonora; e incorporou Estela Monteiro no clássico noir “A dama fantasma” (“Phantom Lady”). Os três foram lançados em 1944, antes da estreia de “Você já foi à Bahia?” – e este, apesar do seu grande êxito, “também se revelaria incapaz de alavancar a carreira de Aurora no cinema, mesmo que por um centímetro”, nas palavras de Castro. Nos EUA, ela faria apenas mais uma ponta no filme “Conte tudo às estrelas” (“Tell it to a star”), de 1945, onde canta “A batucada começou”, de Ary Barroso.

    Não que Aurora fizesse questão de seguir a carreira. Estava se preparando mesmo para o sonho de ser mãe, concretizado com a chegada de Gabriel Alexandre, em agosto de 1947. Com Gabriel Richaid trabalhando como engenheiro aeronáutico, tudo parecia correr bem. Mas sua irmã havia se casado com David Sebastian em 17/03/1947, e o novo dono da casa não tardaria a mostrar as garras. Aurora e Sebastian nunca se bicaram, e em meados de 1949 o casal Richaid decidiu ir morar em Westwood Village, próximo a Beverly Hills, onde, em setembro, nasceria Maria Paula, afilhada de Carmen. Em abril de 1951 – após dez anos nos Estados Unidos –, finalmente Aurora, Gabriel e os filhos tomaram o navio rumo ao Brasil.

    De volta, a cantora retomou suas atividades na Mayrink Veiga, foi trabalhar na boate Night and Day de Carlos Machado, na Cinelândia, e lançou em 1952 um samba inédito de Ary Barroso, “Risque”, que só faria sucesso no ano seguinte com Linda Batista e uma letra ligeiramente diferente: “nos copos de um bar” em vez de “no copo” e “brancura da espuma” em vez de “beleza da espuma”. Viajou às pressas aos EUA no final de 1954 para resgatar sua irmã, cuja saúde andava péssima. Após quatro meses em sua terra natal, Carmen retornou (sem a irmã) para sua casa em Beverly Hills, onde faleceu em 5 de agosto de 1955, deixando Aurora arrasada.

    Sua carreira ainda teria uma sobrevida. Em 1956, além do programa “Se a Lua contasse” – apresentado por ela e Aloysio de Oliveira na carioca Mayrink Veiga, na Nacional de São Paulo e na TV Paulista –, lançou seus dois derradeiros discos em 78 rotações, um deles contendo a divertida “Amor e matrimônio” (“Love and marriage”), fox de James Van Heusen e Sammy Cahn, cuja versão em português, de Haroldo Barbosa, foi cantada por Aurora em dupla com o mesmo Aloysio de Oliveira.

    Também em 1956, lançou o LP de 10 polegadas “Sucessos de Aurora Miranda”, da Sinter, onde ela passava a limpo sua trajetória musical, com regravações de antigos clássicos. Duas das faixas, “Cai, cai balão” e “Petisco do baile” (maxixe de Gadé e Almanir Grego), sairiam também em 78 rotações em 1957, ano em que Aurora levou para o palco da boate Night and Day – vestida de baiana – músicas do repertório de Carmen na elogiada revista “Mister Samba”, que homenageava Ary Barroso. Seria, oficialmente, o seu canto do cisne.

    Aurora Miranda entre os filhos, Maria Paula e Gabriel Alexandre (DI-Jornal Nacional, 06-02-1972) / Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

    “É verdade. Cansei de cantar, cansei do microfone, do palco. As luzes da vida artística já não me atraem mais. Estou mais feliz em meu lar, cuidando de meu marido e filhos, do que num teatro, numa boate ou numa estação de rádio”, declarou à Radiolândia de outubro de 1960. Nesta época, segundo a Revista do Rádio de 17/09/1959, Aurora dava expediente como enfermeira voluntária da Legião Feminina de Combate ao Câncer no ambulatório da Casa do Pobre, em Copacabana. No início de 1966 (como mostrou a revista InTerValo de 6 a 12 de março), fez uma rara aparição no programa de TV “Bossaudade”, em São Paulo.

    Fã número um de Carmen – de quem sempre foi a melhor amiga, o braço direito, o maior suporte –, passaria a vida celebrando a memória da irmã, fosse através de inúmeras entrevistas, fosse doando itens preciosos para o Museu Carmen Miranda. Em diversas ocasiões, daria a entender que, ao contrário da irmã, foi mais bem sucedida no casamento do que na vida artística. Como no jornal O Estado de S. Paulo de 14/02/1999 (Caderno 2, edição especial sobre os 90 anos de Carmen Miranda): “Fui a única feliz de todos os irmãos; Carmen, a mais infeliz”.

    Sempre que podia, minimizava sua importância para a música brasileira, como fez em entrevista publicada no Caderno B do Jornal do Brasil de 04/11/1971 por ocasião do retorno de “Você já foi à Bahia?” aos cinemas cariocas: “Apesar de minha veia artística optei pelo casamento, que continua feliz até hoje. Artista mesmo era Carmen. Eu fui mais consequência. Gostava de cuidar dela, que não tinha a mínima noção das coisas práticas. Não me arrependo da opção. Sou muito solicitada e raramente aceito. E sou bem aceita porque tenho nome. Pode ser que um dia me dê na veneta de voltar, recordar coisas antigas”.

    O que de fato aconteceria vez por outra. E não só em português. Em 1970, por exemplo, Aurora participou do LP “Brazilo kantas por pli bona mondo” (O Brasil canta por um mundo melhor), idealizado pelo professor Sylla Magalhães Chaves, com arranjos do maestro Cipó – um disco todo cantado em esperanto. Aurora participa de três faixas: “Tuj, tuj, balon” (“Cai, cai, balão”), “Neniu amas min” (“Ninguém me ama”) e “Zonotriko en la faruno” (“Tico-tico no fubá”).

    Despediu-se de vez da tela grande fazendo uma participação especial no filme “Dias melhores virão” (1989), de Cacá Diegues, cantando “Você só... mente” – o fox que ela e Francisco Alves haviam lançado em 1933, cinco décadas e meia antes! Ainda em 1989, daria adeus ao querido Gabriel Richaid, seu companheiro por 49 anos, falecido a 7 de dezembro com a idade de 80. Aurora ainda teria fôlego para mais um registro sonoro, às vésperas dos seus 80 anos: em 1994, gravou com Sílvio Caldas, para o songbook de Ary Barroso, o samba “Quando eu penso na Bahia” (parceria de Ary com Luiz Peixoto), revivendo o dueto de 1937 entre a mana Carmen e o mesmo Sílvio Caldas. Em 1995, cantou no Lincoln Center, nos Estados Unidos, em homenagem aos 40 anos da morte da irmã famosa. Foi celebrada em 2000 no programa “Ensaio”, da TV Cultura, e em 2002 no documentário de Dimas Oliveira Júnior e Luis Felipe Harazim.

    Nos últimos três anos de vida, Aurora foi perdendo progressivamente a memória e a vitalidade, tendo sua saúde piorado após contrair pneumonia. Faleceu no Leblon aos 90 anos, no dia 22/12/2005. Deixou um importante legado na música popular brasileira e a mais doce lembrança na memória de quem pôde conviver com ela, ainda que por pouco tempo. Como o cineasta Antônio Calmon, que em 1972 entrevistou Aurora por três dias para uma reportagem publicada no DI–Jornal Nacional em duas partes (30 de janeiro e 6 de fevereiro) sob o título “Minha irmã Carmen”. Às vésperas dos 57 anos, a cantora conservava a beleza e o vigor da juventude.

    Calmon assim a descrevia no texto: “D. Aurora Miranda graças a Deus vive para o presente e para o netinho que está sentado em seu colo enquanto ela fala. É das pessoas mais agradáveis que já conheci, bonita por fora e por dentro”. Impressão semelhante Aurora havia deixado em Marisa Lira décadas antes, quando entrevistada por esta para a edição de setembro de 1939 da PRAnóve: “Veste-se com elegância sóbria, tem maneiras educadas, mas o seu encanto maior é a meiguice que deixa transparecer no olhar, na voz, nos próprios gestos. Tem a graça natural da morena brasileira”.

    Na imagem principal: Aurora Miranda no show “Mister Samba”, na boate Night and Day – O Cruzeiro, 19/10/1957 (Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional)

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