“Minha verdadeira profissão foi trabalhar em jornal.”
Quem lê assim nem imagina que esta frase foi dita por um dos grandes desenhistas e compositores do nosso país. Dono de um traço inconfundível e autor de caricaturas geniais que, segundo o cartunista Jaguar, eram como logotipos das pessoas que retratava. Caricaturista também na música popular, criando tipos e cenas que, na forma sambas ou marchinhas, são cantados até hoje, onde quer que se brinque carnaval. Mas é provável que a frase – dita no programa MPB Especial, da TV Cultura (16-04-1975) – tenha sido usada outras vezes por Antônio Nássara, seu autor, como resposta àqueles que lhe empurravam um dilema do tipo Tostines: era um desenhista que compunha ou um compositor que desenhava?
Eu mesmo arrisquei a pergunta tola para abrir a conversa que tive com Cássio Loredano, caricaturista bom de prosa e especialista em Nássara (de quem foi amigo), e ele não titubeou, na mesma linha do mestre: “Nássara foi as duas coisas, mas trabalhou mesmo na diagramação – ou na ‘paginação’, como ele dizia – de diversos jornais e revistas.” No fim das contas, importa menos a distinção entre as linguagens artísticas do que o olhar (de cronista, de investigador) que lançava sobre o que fosse virar desenho ou música. Entre cervejas e expressos, a conversa seguiu num café em Laranjeiras, nosso bairro (meu, de Loredano e Nássara), com o entrevistado desencavando histórias e, às vezes, cantarolando uma marchinha ou outra.
“Agora você vê: o campeão absoluto da música de carnaval tinha origem 100% árabe”, observa Loredano, antes de salientar que os pais de seu veterano amigo já eram adultos quando chegaram ao Brasil, de navio: o mascate sírio Gibran Nasra e sua companheira, a libanesa Uahyba Dahio. “Ela tinha o dicionário como livro de cabeceira e ele nunca chegou a falar bom português”, conta. Nada que os impedisse de se ambientarem no Rio de Janeiro, onde tiveram sete filhos (Nássara o penúltimo deles) e abriram um armarinho em São Cristóvão, com a família instalada nos fundos. Isso num logradouro poético, a Rua da Esperança (atual General Padilha), nº 2, onde nosso personagem nasceu e passou boa parte da infância.
Teria nascido em 11 de novembro de 1910, segundo o próprio Nássara e as principais fontes de referência, não fosse a certidão de nascimento desencavada pelo escritor e pesquisador Carlos Didier. Como se lê no documento, Nássara era do dia 12 de novembro de 1909, sendo filho de Gabriel e Guaíba, assim mesmo, aportuguesados. “Uma de suas irmãs alterara o registro”, informa Didier no fundamental “Nássara passado a limpo”, biografia de sua autoria publicada pela José Olympio Editora em 2010 – ano do que se acreditava ser o centenário de nascimento de seu biografado. Entrevistada pelo escritor, D. Iracema, viúva de Nássara, desconhecia o motivo da data alterada.
Outra mudança importante nesta história foi a de bairros: no comecinho da década de 1920, a família troca São Cristóvão por um sobrado avarandado na Rua Theodoro da Silva, em Vila Isabel, onde começaria, segundo Nássara (em depoimento ao Museu da Imagem e do Som em 12-02-1968), seu “lusco-fusco de compositor”. E não só por causa dos carnavais que brinca no meio do bloco Faz Vergonha. Do ambiente musical dos cafés do bairro. Ou da amizade que vai fazer com o vizinho (da mesma rua) e contemporâneo (de 1910) Noel Rosa, companheiro em serestas e composições.
É por essa época que Nássara passa a observar o movimento dos sambistas da Mangueira e do Salgueiro. E que ouve com mais atenção os discos de seus pais – especialmente os de tango – que rodopiam no gramofone de casa. “E tinha também o Elias, primo da Uahyba, que era músico e não perdia as festas em Vila Isabel”, acrescenta Cássio Loredano. “Ele pegava o alaúde e cantava músicas tristíssimas, sempre em árabe, fazendo com que o pai do Nássara, morrendo de saudades da terra natal, chorasse sem parar. E no meio desse berreiro o homem acabava abrindo a carteira e entregando tudo ao Elias, que vivia duro e, afinal, ia lá pra isso mesmo. Pra dar uma facada no velho Gabriel.”
Nássara e Loredano / Acervo pessoal de Cássio Loredano
No entanto, quando chegou a vez de estudar para ter uma profissão, a aptidão para o desenho se mostrou mais viável e Nássara quis ser arquiteto. Assim, o ex-aluno da Escola Municipal Nilo Peçanha, onde fez o primário, e do Colégio Pio Americano, onde completou o ensino ginasial, chegou à Escola Nacional de Belas Artes (a ENBA), que funcionava no Museu Nacional de Belas Artes e foi frequentada por ele até o quarto ano. “A um ano de se formar ele levou bomba em desenho”, recorda Loredano. “O professor deu uma prova em que os alunos tinham que desenhar o ‘Lacoonte e Seus Filhos’, uma escultura dificílima, e ele fez uma caricatura da estátua. Não prestou, né?”
Menos mal que na própria ENBA ele formou, com outros apaixonados por música, um conjunto amador que virou atração de festas e também na Rádio Clube do Brasil. Entre seus companheiros no ‘Conjunto da ENBA’ – e das salas de aula – estava justamente J. Rui, com quem assinará composições como sua primeira gravada, em fins de 1931: “Para o samba entrar no céu”, uma parceria deles com Almirante, também solista da gravação, com o Bando de Tangarás. Do mesmo ano é “O sem trabalho”, paródia de Frazão sobre “Sussuarana” (Hekel Tavares e Luís Peixoto) que marca a estreia de Nássara – escondido sob o pseudônimo Luiz Antônio – como cantor.
Por essa época, já corria em paralelo o trabalho de diagramador em veículos impressos, os mesmos em que rabisca seus desenhos iniciais. Após as primeiras caricaturas publicadas (estreou n’O Globo em 29-04-1927), emprega-se nas principais redações da cidade: n’A Crítica, jornal de Mário (pai do dramaturgo Nelson) Rodrigues, conhece mestres do desenho como o mexicano Omar Figueroa e o paraguaio Andrés Guevara, com quem trabalha como assistente. Depois leva seu traço à revista Carioca, à Vamos Ler e ao jornal A Noite e, já na década de 1940, às revistas O Cruzeiro e Diretrizes.
Com o salário sempre insuficiente, a jornada de trabalho muitas vezes se dava em mais de um endereço, às vezes diagramando uma página aqui, fazendo uma caricatura ali... Neste vaivém entre redações, volta e meia entrava no Café Nice, onde sabia das últimas do rádio e do samba. “O tempo dava pra tudo”, recordou, na mesma entrevista de 1975. “Você tomava um café sentado, em mesa de mármore, com três copos d’água e demorava mais tempo do que hoje você almoça num restaurante.”
Quem estava sempre pelo Nice era Orestes Barbosa, o jornalista e poeta que, assim como Guevara e Figueroa no traço, será uma referência importante para o jovem Nássara na maneira de olhar a cidade, seus tipos e questões. Entre xicrinhas e fofocas, também farão parcerias na música, seja em ritmo de samba – como “Caixa Econômica”, gravado por Luiz Barbosa em 1933 – ou de marcha – caso de “As lavadeiras”, lançada no mesmo ano, com os próprios autores em dueto.
Noel Rosa e Orestes Barbosa por Nássara (reproduções de 'Nássara desenhista', Funarte/1985)
E já que “o tempo dava pra tudo”, Nássara conseguiu mais um emprego, desta vez no rádio. Tornou-se speaker e redator do primeiro programa comercial da história do rádio brasileiro, o Programa Casé, líder absoluto de audiência a partir de 1932 (quando estreou, na Rádio Phillips), com seu elenco estrelado – Carmen Miranda, Francisco Alves, Almirante, Noel Rosa... E aí quando a Padaria Bragança, de Botafogo, procurou o produtor Ademar Casé querendo anunciar no programa, coube a Nássara compor o anúncio, criando, sem saber, o pioneiro jingle de rádio no Brasil:
Oh, padeiro desta rua
Tenha sempre na lembrança
Não me traga outro pão
Que não seja o pão Bragança
O fado, cantado por Luiz Barbosa – outro ás daquele cast – não só agradou, como emocionou Seu Abílio, o dono da padaria, que fechou contrato de um ano patrocinando o Programa Casé. Pois foi também na voz de Luiz Barbosa que a audiência da Rádio Phillips ouviu pela primeira vez, nesse mesmo ano de 1932, a marchinha “Formosa”, uma composição de Nássara com o ex-colega J. Rui que estouraria no carnaval de 1933, lançada em disco no dueto de Mário Reis com Francisco Alves.
Foi o primeiro sucesso de Nássara, que então passou a ser cobrado por intérpretes como o próprio Francisco Alves, que, às vésperas do carnaval seguinte, quis saber do autor de “Formosa” se tinha alguma outra novidade para ser lançada. “Vai ficar só naquela?! O senhor agora tem que fazer outras!”, desafiou-lhe o cantor, como relembrou nosso cartunista-compositor na entrevista ao programa MPB Especial. “Fiquei obrigado a ser o quê? Carnavalesco”, arremata Nássara, como que explicando sua iniciação no doce ofício de compor para carnaval.
Como em 1936, quando, inspirado na ária “E lucevan le stelle”, da ópera “Tosca” (Giacomo Puccini), dividiu com Eratóstenes Frazão a composição de “A.M.E.I.”, marchinha que Chico Alves levou ao disco e ao cinema, no filme “Alô, alô, carnaval”, de Adhemar Gonzaga. Ou em 1934, quando aproveitou um trechinho da música-tema da opereta “Rose Marie” (Harbach, Hammerstein II, Friml e Stothart) para fazer outra marcha lançada por ele, “Maria Rosa”, “com aquela letra descritiva que é perfeitamente uma caricatura musicada”, como observa Cássio Loredano.
Cadê Maria Rosa
Tipo acabado de mulher fatal
Que tem como sinal
Uma cicatriz
Dois olhos muito grandes
Uma boca e um nariz
Nássara só não gostou quando viu sua marchinha desclassificada (sob a alegação de plágio) do concurso de músicas carnavalescas de 1934. Ainda mais quando percebeu que o prêmio provavelmente ficaria com “Ride palhaço”, marcha de Lamartine Babo também inspirada em outra música, uma ária da ópera “Pagliacci” (Ruggero Leoncavallo). A inspiração de Lalá logo seria exposta numa coluna do jornal A Hora e, com isso, “Ride palhaço” também acabaria fora do páreo, deixando o primeiro prêmio para “Tipo sete”, outra marchinha de Nássara – aqui parceiro de Alberto Ribeiro – lançada por Francisco Alves.
Já para o carnaval seguinte, a principal aposta de Nássara – com Frazão – tinha como mote (sem citação musical) mais uma música italiana, “Cuore ingrato” (Salvatore Cardillo e Riccardo Cordiferro), sucesso do tenor Enrico Caruso em 1911. Só que “Coração ingrato” carnavalizava a cornitudine italiana (do sujeito abandonado por uma certa Catari), com um toque de charge política: aqui o coração é “ditador”, assim como Getúlio Vargas, reempossado presidente da República de maneira indireta (sem eleição), após a promulgação da Constituição de 1934.
Leve e bem-humorada, a marchinha surpreendeu no concurso musical de 1935, desbancando simplesmente “Cidade Maravilhosa” (André Filho), que era já então a preferida do público e, com o tempo, seria promovida a hino oficial da cidade. Mas Nássara não estava nem aí e comemorou mais um primeiro prêmio, como ficou registrado na entrevista dada ao semanário O Pasquim (26-02 a 04-03-1974): “Eu acho que ganhei bem! ‘Cidade maravilhosa’ é muito ruim!”
“Com esse negócio de ganhar prêmio, até hoje tem caga-raio que é contra mim”, queixou-se Nássara, na mesma entrevista, não sem dar explicações para o apetite que, com o tempo, passou a ter pelas disputas musicais que antecediam o carnaval. “Naquele tempo, a música popular não dava 400 réis. A única forma de você se salvar no jogo eram aqueles concursozinhos, que davam 5 contos. Direito autoral não dava nada.”
Carnaval polpudo, então, foi o de 1939, quando Nássara foi duplamente vitorioso no concurso musical anual. Levou o título de melhor samba, com “Meu consolo é você” (em parceria com Roberto Martins), e também o de melhor marcha, com “Florisbela” (outra com Frazão), que desbancou a favorita “A jardineira” (Humberto Porto e Benedito Lacerda), mas merecia vida mais longa, na avaliação do compositor. “Essa música é pouquíssimo regravada, né?”, ralhou, na entrevista à TV Cultura. “É uma das coisas inexplicáveis da música popular.”
O mesmo não se aplica a “Alá la ô”, a marchinha que fez com Haroldo Lobo para o carnaval de 1941 e, mesmo sem o prêmio no concurso daquele ano, foi uma das músicas mais cantadas nas ruas e nos salões. “Deu um conto cento e oitenta!”, contabilizou Nássara, saudoso (era o equivalente a cinco salários mínimos!), na entrevista ao Pasquim. No quesito permanência, a marchinha também não daria margem a queixas: nenhuma composição de Nássara seria tão regravada quanto “Alá la ô”, clássico carnavalesco até os dias atuais.
Alá la ô, ooô, ooô
Mas que calor, ooô ooô
Atravessamos o deserto de Saara
O sol estava quente
Queimou a nossa cara
“Nássara é uma instituição”, afirma Cássio Loredano. “Você não pode pensar o Brasil sem um ‘Alá la ô’, sem ‘Periquitinho verde’, sem aquela outra música que toda criança sabe, ainda hoje, em tudo quanto é canto do Brasil: ‘Lá vem o seu Noé, comandando o batalhão...”, cantarola o amigo aprendiz, evocando duas parcerias do mestre com outro compositor desenhista: o baiano José de Sá Roris, professor de Nássara na ENBA. Duas marchinhas que falam em bichos lançadas para o carnaval de 1938: “Arca de Noé”, gravada por Almirante, e “Periquitinho verde”, lançada pela adolescente Dircinha Batista, debutando — aos 15 anos! — no mercado fonográfico.
Com boa repercussão desde o lançamento do 78 rpm, em janeiro de 1938, “Periquitinho verde” era a principal aposta de Nássara para o concurso de músicas de carnaval daquele ano. A música, no entanto, passou em branco na avaliação do júri, que deu o primeiro prêmio das marchinhas a “Touradas em Madri”, de João de Barro e Alberto Ribeiro. O resultado acabou impugnado (pois um dos derrotados alegou que a música não era uma marchinha e, sim, um pasodoble) e, mesmo assim, o título ficou com João de Barro, pois no novo concurso foi proclamada vitoriosa “Pastorinhas”, parceria dele com Noel Rosa, falecido em maio de 1937. Nássara não se aguentou e, na saída da Feira de Amostras, local da final, provocou o vencedor – dizendo que a vitória não era dele, mas “da alma de Noel” – e trocaram sopapos.
Com o Poeta da Vila, aliás, ficaram apenas duas parcerias de Nássara, sendo a mais inspirada delas “Retiro da saudade”, marcha romântica lançada em outubro de 1934 – por Francisco Alves e Carmen Miranda – sem qualquer pretensão carnavalesca. Entre as composições de meio-de-ano (isto é, não-carnavalescas) na obra de Nássara, outra digna de nota é “Tens de compreender”, samba tristonho gravado por Aracy de Almeida em 1935, antecipando em sete anos as agruras de Amélia e Emília, musas da folia de 1942.
Mas o leitor ou a leitora não se engane. Nássara gostava tanto de compor para carnaval que até valsa ele fez para a folia: “Nós queremos uma valsa” foi sua ousadia cometida – em parceria com o fiel Frazão – em 1941. Assim como também os fatos históricos viraram charges carnavalescas em sua imaginação: os candidatos à eleição de 1937 – que acabou não acontecendo, abafada pelo Estado Novo – estão retratados em “A menina presidência” (com Cristóvão de Alencar), enquanto o pavor com a Segunda Guerra Mundial é amenizado por outra marchinha, “Calma no Brasil”, feita em parceria com Frazão para o carnaval de 1940, primeiro após o início das batalhas na Europa.
Neste Brasil é bem pacata a mocidade
Não anda armada nem sequer de canivete
Enquanto os outros têm batalhas de verdade
Nossas batalhas são batalhas de confete...
Em tempos mais amenos, voltou a desenhar seus tipos em letras de marchinhas, como na folia de 1950, quando criou o “Rei Zulu” (com Antônio Almeida) e a “Balzaquiana” (com Wilson Batista), inaugurando o substantivo feminino criado – a partir dos romance “A mulher de trinta anos”, de Horoné de Balzac – especialmente para a ocasião. Na mesma linha serelepe é “Sereia de Copacabana”, parceria com Wilson que disputou a preferência dos foliões em 1951.
Definido por Nássara como um “sambista puro, autêntico, positivo”, Wilson Batista é um dos poucos parceiros que ele recorda com um elogio espontâneo no programa MPB Especial – outro é Haroldo Lobo, com “aquela facilidade de fazer música”. Mas no caso de Wilson, observador atento e espirituoso do cotidiano (assim como Nássara), a afinidade foi especial, rendendo ótimos sambas de meio-de-ano em homenagem ao Rio de Janeiro (“Cidade de São Sebastião”, de 1941) e a Francisco Alves (“Chico Viola”), cuja morte precoce, num acidente automobilístico em setembro de 1952, parou o Rio de Janeiro e comoveu o país.
“Wilson, além de parceiro, era um amigo querido do Nássara”, sublinha Cássio Loredano, antes de resgatar outra história que ouviu do veterano desenhista-compositor. “Uma vez, na Galeria dos Comerciários, ele me contou do dia em que, na Galeria Cruzeiro, encontrou Wilson Batista num canto, de cara para a parede. ‘O que é que há, Wilson?’ E ele: ‘Tô com uma coisa que não me sai da cabeça.’ O quê? ‘Um negócio assim: tundum tundum tundundum...’ E ficou repetindo aquele barulho, que mais parecia um barulho de trem. Até que começou a vir, naquela levada, o início da letra...”
Aquele mundo de zinco que é Mangueira
Desperta com o apito do trem...
Quando o samba “Mundo de zinco” foi lançado, na voz de Jorge Goulart, tornando-se um dos maiores sucessos do carnaval de 1952, Nássara já vinha, aos poucos, se afastando da música. Além de não ter mais o fôlego de antes para se movimentar no negócio – cada vez mais demandante – da música, enfrentava desde a década de 1940 uma perda de audição que, com o tempo, evoluiria para uma surdez severa. Fez ainda a paginação da revista Flan e do jornal Ultima Hora antes de se retirar das páginas e dos discos, aposentado como diagramador e também servidor do Ministério da Justiça – “Fui funcionário do Departamento de Imprensa e Propaganda”, disse ao Pasquim, sem mais detalhes.
Nássara mascarado na entrevista à edição carnavalesca d'O Pasquim em 1972 (reprodução da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional) e os 'presidenciáveis' desenhados por ele na capa da edição de 02-06-1978 (reprodução do livro 'Nássara desenhista', Funarte/1985)
Pois foi justamente a partir desta entrevista ao Pasquim, publicada às vésperas do carnaval de 1974, que o veterano Nássara começou a se desaposentar. “Ele estava lá empalhado”, disse o cartunista Jaguar, que além de convidá-lo como entrevistado, depois teve a “luminosa ideia” – segundo Loredano – de chamá-lo para ilustrar a entrevista impressa. Pronto: nas edições seguintes, seu traço inconfundível de “Mondrian do portrait-charge” – na definição de Millôr Fernandes – era mais uma atração nas páginas do jornal, famoso pela irreverência e pela resistência à ditadura militar.
“É ali, quando ele passa a ter aquele espaço regular como desenhista n’O Pasquim, que a minha geração passa a ter contato com o traço genial dele”, situa Cássio Loredano, antes de encontrar na memória caricaturas marcantes desta fase. “Lupicínio genial, Lucio Alves incrível. Aracy, Caetano, Bethânia, Noel... Tudo absolutamente brilhante.” Mas nada marcou tanto Loredano quanto uma edição de 1978 que recebeu na Alemanha, onde morava. “Na capa estava um desenho magistral do Nássara com os possíveis sucessores do Geisel trocando pontapés num campo de futebol”, descreve. “Aquilo me deixou aflito, pois jornal tem vida curta, né? No dia seguinte já está embrulhando peixe... E como é que pode um caricaturista como o Nássara não ter seu trabalho registrado num impresso que permaneça? Pensei: quando eu voltar pro Brasil vou resolver isso.”
Em fevereiro de 1985, já estava resolvido: “Nássara desenhista”, primeiro livro de Cássio Loredano, era lançado pela Funarte, com exemplares da obra de seu novo amigo perenizados em 140 páginas. Até a publicação, foi preciso um ano de visitas diárias à Biblioteca Nacional revirando páginas em jornais e revistas das décadas de 1920 a 50. “A partir de um ponto, quando ele percebeu que o negócio era sério, passou a me acompanhar nessas visitas, o que ajudou tremendamente, com pistas decisivas para que achássemos seus desenhos”, relata Loredano. “A gente era amigo de verdade – mesmo com 38 anos de diferença. E a conversa era sempre uma delícia, fosse andando pelo Centro, numa mesa do Vermelhinho, bebendo chope na Adega Portugália ou aqui em Laranjeiras.”
A capa do livro de estreia de Loredano e o personagem-tema em duas fotografias de José Augusto Reis publicadas na obra (reproduções do livro 'Nássara desenhista', Funarte/1985)
Depois de um desses encontros, em fins de 1996, ao ouvir o mais-velho dizer que estava sofrendo de “problemas na tubulação”, Loredano de novo foi rápido. Organizou uma reunião de aniversário no Café Lamas e telefonou para os amigos de sempre, recomendando que não faltassem. “Liguei pro Millôr. Pro Jaguar, Chico (Caruso), Nani, Lula, Chico Paula Freitas... E eu, naturalmente, fiquei do lado dele, né? Eu e as folhas de papel, como fazíamos sempre: eu escrevia as perguntas, ele procurava os óculos, lia e respondia – às vezes aos berros, outras vezes baixo demais pro som ambiente", diverte-se Loredano. “Até que, num esbarrão do Nani, a papelada se espalhou pelo chão e Jaguar não perdeu tempo: ‘Isso é que eu chamo de jogar conversa fora!’”
Um mês depois – era 11 de dezembro de 1996 – Loredano almoçava no Centro da cidade quando recebeu a notícia da morte do amigo. “Um choque, né? Mesmo sabendo que a saúde não ia bem”, relembra. Nássara morreu em casa, um apartamento na Rua Belizário Távora, em Laranjeiras, “enquanto lia o jornal”, como informou a Folha de S. Paulo (12-12-1996), sentado na poltrona da sala. Aos 87 anos (e não 86, como se leu nos jornais), foi vitimado por um infarto do miocárdio, mas “sem dor, sem sofrimento”, segundo D. Iracema, a viúva, em relato ao Jornal do Brasil (12-12-1996).
Só à noite Cássio Loredano conseguiu ir ao velório, levando junto o compadre Luiz Camillo Osorio, professor e crítico de arte. “Ficamos lá, na madrugada, em volta do velho: cantávamos umas músicas, íamos lá fora beber uma cerveja e voltávamos pra cantar mais. Depois, outra cerveja e mais algumas marchinhas e sambas. Fomos assim até três da manhã, quando fecharam o Caju e tivemos que sair, deixando o Nássara lá, deitado, com aquela nariganga dele: estava de boina, a bengala ao lado e uma expressão serena no rosto, como se estivesse rindo.” Ou seja, fazendo jus – até o fim – ao mote da autocaricatura que fez nos anos d’O Pasquim.
Autocaricatura de Nássara / Reprodução da internet
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Na foto principal: Nássara clicado por Nelson Vidal n'O Pasquim de 26-02-1974 / Reprodução da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional




