<
>
/
 
0:00
10:00
autor  
interprete  
    minimize editar lista close

    Todos os esforços foram feitos no sentido de encontrar dados mais precisos sobre a autoria dessa obra. Qualquer informação será bem-vinda.

    Domínio público
    Clique no botão para baixar o arquivo de áudio

    Posts

    Ôôôô, Aurora: se você fosse sincera, talvez não reinasse há 85 anos como uma das mais queridas marchinhas do nosso Carnaval!

    Fernando Krieger

    tocar fonogramas

    Se você fosse sincera, ôôôô, Aurora
    Veja só que bom que era, ôôôô, Aurora
    Um lindo apartamento com porteiro e elevador
    E ar-refrigerado para os dias de calor
    “Madame” antes do nome você teria agora
    Ôôôô, Aurora

    “Aurora” é dessas músicas que a gente já nasce sabendo. Marchinha feita no Rio de Janeiro por Mário Lago e Roberto Roberti, ela nunca mais sairia da boca do povo desde o seu lançamento, há 85 anos, em dezembro de 1940, pela dupla Joel e Gaúcho.

    “A ideia de ‘Aurora’ surgiu depois de uma noite no Cassino”, disse Mário Lago em entrevista a Julio Pires para uma reportagem sobre a origem das músicas do Carnaval de 1941, publicada em O Cruzeiro de 22 de fevereiro daquele ano. “Vinha eu e o Roberto Roberti num daqueles ônibus verdes da Urca, quando descobrimos na nossa frente um casal discutindo. Dizia ela: ‘Bem feito. Quem mandou você jogar nos números que não davam?’. Ele então respondia: ‘Ôôôô, Aurora!...’. Ao chegarmos à cidade, descobrimos que ela também dera os seus ‘palpites’ errados... Por isso, quando o dia já ia raiando, saiu: ‘Se você fosse sincera, ôôôô, Aurora...’”.

    Boa história, mas teria sido mesmo o que aconteceu? Porque, anos depois, o próprio Mário Lago, em seu livro de memórias “Na rolança do tempo” (Civilização Brasileira, 1979, 4ª edição), iria se encarregar de contar outra versão, que se tornaria a oficial. De acordo com esta, foi na Quarta-Feira de Cinzas de 1940 (dia 7 de fevereiro, portanto) que Roberto Roberti surgiu na frente de Mário Lago “animado como se ainda estivesse no baile do Bola Preta”, dizendo: “Já tenho o sucesso pro Carnaval do ano que vem. Topas entrar na parceria?”. E foi sapecando o estribilho, ainda incompleto: “Se você fosse sincera, ôôôô, Aurora, lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá, ôôôô, Aurora”. “O motivo de fato era fácil, e o Roberto Roberti estava tão animado que acabou me contagiando: como por encanto me ocorreu o ‘veja só que bom que era’ (...)”, escreveu Mário.

    Ele segue contando que terminaram a marcha naquela mesma tarde. Mas o final original da segunda parte era ligeiramente diferente daquele que ficaria conhecido. Era assim: “‘Madame’ antes do nome você teria agora / Se você fosse sincera, ôôôô, Aurora”. Calhou de Mário mostrar a composição a um grande amigo e parceiro, o compositor Roberto Martins. Este, segundo Mário, disse: “Experimenta cortar esse ‘se você fosse sincera’ da segunda parte. Do ‘você teria agora’ vai logo ao final. Fica mais grudado. Pé-grande não sabe contar tempo de espera, vai atravessar”. “O Roberto Martins estava certo”, afirmou Mário.

    Em julho, outro encontro definiria os intérpretes da marcha. Quem contou a história foi um deles, Joel de Almeida, o Magrinho Elétrico, em seu depoimento para o programa “MPB especial” da TV Cultura em 1974 – reproduzido no 5º volume do livro “A música brasileira deste século por seus autores e intérpretes” (Sesc, 2001), de João Carlos Botezelli (Pelão) e Arley Pereira. “Mário Lago já vinha com Roberto Roberti e me chamaram para ir até a Americana, defronte [do Café Nice], para tomar um chope, (...) e me deram uma marcha. (...) ‘Joel, fizemos uma marcha maravilhosa. Quer ouvir?’. Eu digo: ‘Mas vamos tomar um chopinho primeiro’. Era o meu cachê pra ouvir. Aí eles cantaram essa marcha (...)”. Conta Mário Lago que a reação de Joel foi: “Aqui!, que vocês dão a outro pra gravar. Esta é do papai”.

    Ainda de acordo com Joel de Almeida, segundo informou José Ramos Tinhorão no Jornal do Brasil de 31/01/1963, “a música de ‘Aurora’ concorrera a um concurso instituído pela fábrica de casimiras Aurora, mas não obteve colocação. Mário Lago (...) foi quem se lembrou de aproveitar a sugestão do nome Aurora para criar a figura feminina (...)”. Conclui Tinhorão que “Aurora” teria sido “a primeira marcha de Carnaval originada de um jingle comercial que o tino de Joel soube descobrir”.

    Joel (à esquerda) e Gaúcho, os lançadores de “Aurora”. Foto com dedicatória para Vassourinha datada de 03/12/1936. Coleção José Ramos Tinhorão / IMS

    E há também o relato apresentado por Osmar Frazão na Tribuna da Imprensa de 23/01/1978, enfocando o ponto de vista de Roberto Roberti. Segundo esta versão, tudo teria se passado em meados de 1940. Roberti, tendo perdido muita grana no Cassino Atlântico, em Copacabana, pegou uma condução até o Centro. No caminho, brincou de misturar mentalmente trechos de duas marchas conhecidas: no lugar da primeira frase de “Pierrô apaixonado”, de Noel Rosa e Heitor dos Prazeres, colocou “Se você fosse sincera”; a segunda frase de “Lalá”, de João de Barro e Alberto Ribeiro (“mas foi Lelé...”), virou o famoso “ôôôô”. Aurora era um nome de mulher que estava na moda à época. Para completar o estribilho, incluiu um “veja só que bom seria”.

    Chegando à cidade, na esquina da Rua do Ouvidor com o Largo de São Francisco, por volta das seis da manhã, encontrou Mário Lago. Este, sugerindo a troca por “veja só que bom que era”, terminou a música para o amigo. A introdução instrumental, segundo Frazão, foi bolada por Roberto em seu apartamento. De acordo com o depoimento de Roberto a Frazão, “nós apresentamos a marcha a diversos cantores e nenhum deles se definiram [sic] em gravá-la. (...) senti a decisão da dupla de cantores [Joel e Gaúcho] e fizemos um compromisso de ‘pedra e cal’ com eles”.

    Ou seja, existem versões bem diferentes para o nascimento deste clássico da folia que, segundo recorda Mário em seu livro, fez sua estreia em setembro, num show em Santa Cruz, “e o público saiu do teatro cantando”. Em novembro de 1940, a marcha foi finalmente levada ao disco (Columbia 55250) por Joel e Gaúcho (Francisco de Paula Brandão Rangel), com acompanhamento da Orquestra Columbia, tendo do outro lado o samba “Não vou pra casa”, de Antônio Almeida e Roberto Roberti.

    Também há incerteza quanto à data exata da gravação deste disco, que chegou às lojas em dezembro de 1940 e seria relançado pela Continental em dezembro de 1943. No segundo volume da “Discografia brasileira – 78 rpm” editada pela Funarte em 1982, há a informação de que ambos os lados do 78 rotações da Columbia (com os fonogramas de matrizes 330 e 331) foram gravados em 07/11/1940. Mas, no terceiro volume, onde está indicada a reedição do disco (observando-se os mesmos números de matriz) pela Continental em 1943, lê-se 11/11/1940 como a data em que Joel e Gaúcho fizeram o registro.

    Nem foi preciso esperar pelos festejos de Momo: em dezembro mesmo, a marcha já tinha caído no gosto popular. Em reportagem feita pelo jornal O Radical do dia 1º daquele mês, sob o título “Que iremos cantar no Carnaval?”, o autor da matéria chama “Aurora” de “a grande marcha do momento”: “(...) eis que rebenta de todos os lados, numa verdadeira blitzkrieg [guerra-relâmpago] contra a tristeza: ‘Se você fosse sincera, ô... ô... ô... ô... Aurora, veja só que bom que era, ô... ô... ô... ô..., Aurora’. Depressa, toda a cidade estava repetindo esse coro infernalíssimo, fazendo da marcha de Mário Lago e Roberto Roberti a coqueluche do momento”.

    Os autores de ‘Aurora’, Mário Lago (em foto da Coleção José Ramos Tinhorão / IMS) e Roberto Roberti (reprodução da internet) 

    “É o grande êxito do momento”, concordava a Carioca do dia 7, publicando a letra da marcha e chamando-a, em outra página, de “uma loucura em música de autoria de Mário Lago e Roberto Roberti”. A Fon-Fon do dia 14 repetiu a expressão de O Radical: “(...) tornou-se a coqueluche do povo a marcha ‘Aurora’ (...)”. O Imparcial do dia 15 destacava a rivalidade entre “Aurora” e o samba “Helena!... Helena!...”, de Antônio Almeida e Constantino Silva (Secundino), que também conquistava a simpatia popular através da gravação dos Anjos do Inferno. No dia 21, o mesmo periódico não deixava dúvidas sobre “Aurora”, “marcha que já toda a população carioca canta e que representa já uma antevisão do Carnaval de 1941”. Era também a aposta do anônimo cronista de A Noite do dia 31, que disse, ao escrever sobre Joel e Gaúcho: “A querida dupla crê firmemente no sucesso de ‘Aurora’ durante o Carnaval. E nós também acreditamos”.

    Roberto Roberti idem. Tanto que, em parceria com Arlindo Marques Jr. e Jorge Murad, nem esperou fevereiro chegar para pegar carona no estrondoso sucesso da sua composição. No dia 6 de janeiro de 1941, Joel e Gaúcho voltaram ao estúdio para registrar a marcha feita pelo trio, “Até papai”, que juntava as duas “rivais”: “Por causa da Helena, por causa da Aurora / Até papai já chega em casa a uma hora / Ai, ai, Helena, ô, ô, Aurora / Até a minha mulher já telefona pro escritório a toda hora”. “Até papai” acabaria entrando – ao lado, claro, de “Aurora” e “Helena!... Helena!...” – na trilha sonora do hoje perdido filme carnavalesco “Céu azul”, estreado naquele mês. Já o longa estadunidense “Lady be good”, de 1941, ganharia no Brasil um título que também tirava uma casquinha da marcha-sensação: “Se você fosse sincera”.

    Que a marchinha teria grande êxito no Carnaval, disso ninguém duvidava. O que pode ter causado espanto foi o quão longe ela chegaria... Quando a pianista Carolina Cardoso de Menezes a gravou em maio de 1941 como um foxtrote – numa versão instrumental cheia de variações, uma delas em tom menor –, “Aurora” já teria começado a se estrangeirar. É o que dá a entender a Carioca em suas edições de 05/07/1941 – “‘Aurora’, a popularíssima marcha de Mário Lago e Roberto Roberti, venceu nos Estados Unidos. (...) O big hit lançado por Joel e Gaúcho já mereceu, até agora, nada menos de dezesseis gravações” – e de 11/10/1941 – “E, de acordo com o depoimento do industrial João Daudt de Oliveira, é um dos maiores cartazes de propaganda do Brasil na terra de Tio Sam”. Ou seja, nesta época ela teria muito mais registros fonográficos lá fora do que os dois únicos feitos no Brasil em 78 rotações (apenas o original, de Joel e Gaúcho, e o de Carolina).

    Alguns destes registros estrangeiros chegariam até nós, praticamente todos feitos ainda em 1941. A marcha ganhou uma letra em inglês – “You’re a sweetheart in a million, oh oh oh oh, Aurora...” – feita por Harold Adamson, que Dick Haymes canta acompanhado por Harry James e sua orquestra – no rótulo, ela é classificada como marcha-fox. Outra novidade era uma introdução cantada, inexistente na versão de Mário e Roberto, apresentando Aurora como uma moça do Rio de Janeiro que dança num pequeno café de rua. Foi com esta abertura que as Andrews Sisters, apoiadas por Vic Schoen e sua orquestra, interpretaram-na tanto em disco quanto no filme “Segure o fantasma” (“Hold that ghost”), de 1941, da dupla de comediantes Abbott e Costello (ouça no final do trailer).

    A mesma introdução cantada aparece na gravação de Helen O’Connell com Jimmy Dorsey e sua orquestra, onde “Aurora” é novamente classificada como um foxtrote, e também na de Tito Guizar, que a transformou num corrido, com letra em espanhol de Pedro Berrios. Mais tarde, pelas mãos do sexteto de Joe Panama – numa versão instrumental –, virou um merengue mambo. Há também um registro estrangeiro da marcha feito por uma artista brasileira: entre julho e agosto de 1941, Aurora Miranda – então morando nos Estados Unidos – “gravou 3 discos no selo Decca, em todos acompanhada pelo Bando da Lua e com arranjos de Vadico (o famoso parceiro de Noel Rosa), que, nessa época, também trabalhava nos EUA”, explica J. L. Ferrete na contracapa do long-playing “Aurora e Carmen Miranda e o Bando da Lua” (MCA Records, 1975).

    No mesmo texto, Ferrete revela: “Desses 78 rpm, apenas um chegaria até nós (...). Outro, trazendo mais dois números carnavalescos – ‘Aurora’ e ‘A jardineira’ – só foi editado nos EUA e raros colecionadores o possuem. O terceiro (...) nem nos EUA saiu. Está sendo revelado agora”. Portanto, a gravação de “Aurora” feita por sua xará Aurora com o Bando da Lua – em 20/08/1941, segundo informação da contracapa – só seria conhecida entre nós 34 anos depois, com a edição do citado LP.

    A marchinha continuaria sua carreira de sucesso no exterior, chegando ainda mais longe. A Carioca de 29/11/1941 publicava uma carta onde Pascoal Carlos Magno, cônsul brasileiro em Liverpool, revelava a Mário Lago que a Inglaterra havia se dobrado à música: “Se eu não fosse seu amigo de tantos e tantos anos, decididamente, nesta hora em que só escuto ‘Aurora’, cantada de todos os jeitos, tipo praga, era para lhe querer mal pela dor de cabeça. Aí vai um abraço para repartir com Roberti pelo triunfo. (...) A BBC geme sua ‘Aurora’ não sei quantas vezes por dia... Orquestras a desafiam. Pares a dançam. E a Inglaterra toda canta ‘Aurora’ com o mesmo gosto que está cantando as canções popularizadas pela Carmen [Miranda]”.

    ‘Aurora’ em três capas de partituras: a brasileira original ao centro, entre duas edições estadunidenses (reproduções da internet)

    E mais longe ainda. Ruben Gill, na Carioca de 06/12/1941, escrevia sobre “(...) ‘Aurora’, a canção carnavalesca que depois de empolgar o Brasil inteiro foi gravada e irradiada em inglês na América do Norte, e acaba de ser gravada no Japão, também em inglês, conforme o disco que acabo de receber de presente, de Buenos Aires”. Em 1943, o produtor e cineasta Wallace Downey revelava ao Diário da Noite (edição de 18 de fevereiro): “Nos Estados Unidos, as orquestras é que impõem a melodia. ‘Aurora’, por exemplo, o sucesso de Roberto Roberti e Mário Lago, já vendeu mais de 700.000 discos”. Mais tarde, em 1947, A Cena Muda do dia 4 de março destacava: “Segundo informa ‘Variety’, o grande semanário americano, ‘Aurora’, a célebre marchinha de Roberto Roberti, é, presentemente, um grande sucesso em Paris (...)”.

    Aparentemente uma unanimidade, a marchinha não escapou de sofrer críticas. Uma delas foi exposta por Mário Lago em seu livro, a propósito da frase “veja só que bom que era”: “Os cultores da boa linguagem torciam o nariz (...). Aquilo era caso de condicional (na época não se dizia futuro do pretérito): seria”. Conta ele que certa tarde chegou a ser interpelado por seu antigo professor de português no Colégio Pedro II, Antenor Nascentes, a quem acabou convencendo “da tradição na linguagem oral, da força emprestada à frase pelo ‘que bom que era’, dispensando o pedantismo da forma condicional. Tempos depois tive a alegria de ler um trabalho de Antenor Nascentes sobre linguagem falada, e o bom mestre se referia a nossa conversa, aceitando meu ponto de vista”.

    Também seria por vezes considerada machista: uns diriam que a marcha, ao falar da insinceridade da personagem, na verdade estaria insinuando que esta característica é própria das mulheres em geral. Outros, que a música defendia o casamento como única forma de ascensão feminina na sociedade, quando as moças (preferencialmente belas, recatadas, do lar... e sinceras, naturalmente) ganhariam um “madame” – indicativo de status, de posição social – antes do nome e teriam alguém para lhes dar um lindo apartamento, ar-refrigerado... Mário Lago e Roberto Roberti provavelmente não quiseram endossar nenhum desses pensamentos, mas sim tão somente fazer uma canção bem-humorada, aproveitando a abertura que o Carnaval propicia.

    “As melodias momescas deram para utilizar, como legenda, os nomes femininos. Trata-se, evidentemente, de uma consequência do êxito de ‘Aurora’, a marcha que alcançou, na América do Norte, o recorde de dezesseis gravações”, observava o redator da revista Vamos Lêr! de 05/02/1942, pouco mais de um ano após o estouro da composição. A mesma sensação teve Danilo Martins, que na Carioca do dia 7 escreveu: “Notamos até, depois do êxito notabilíssimo de ‘Aurora’, a preocupação de batizar os hits momescos com nomes femininos”.

    O próprio nome “Aurora” seria utilizado um sem-número de vezes para batizar músicas de autores diversos: na página do Instituto Memória Musical Brasileira podem ser encontradas 28, feitas entre 1957 e 2025, intituladas apenas “Aurora” – fora as denominadas “Ai, Aurora”, “Adeus, Aurora”, “Alô, dona Aurora”, “Samba da Aurora”... Sem contar as “Auroras” que já existiam antes da marcha de Mário Lago e Roberto Roberti, lançadas entre 1906 e 1932. São pelo menos oito, gravadas pela turma da antiga: Eduardo das Neves, Mário Pinheiro, Artur Castro, Ildefonso Norat... Somente a “Aurora” de Zequinha de Abreu e Salvador J. de Moraes receberia, a partir de 1929, inúmeras releituras, não só em 78 rpm mas também em LPs. Talvez a “Aurora” mais antiga seja a de Joaquim Antônio Callado: uma quadrilha em cinco movimentos, composta no Século 19 e registrada em 2002 no CD “Joaquim Callado, o pai dos chorões” por Walmir Gil e Nailor Proveta.

    Discos de ‘Aurora’ : mosaico com os rótulos de regravações da marchinha de Mário Lago e Roberto Roberti  / Reproduções da internet e Arquivo Nirez

    Só mesmo escutando cada um dos fonogramas para se saber quantas destas composições falam de uma mulher, quantas versam sobre a claridade que precede o nascer do Sol, ou ainda quantas estão se referindo ao princípio de algo – um dos significados do substantivo aurora –, como faria o próprio Roberto Roberti na marcha “Saudade da aurora” (“da aurora da minha vida”, diz a letra), parceria com Arlindo Marques Jr. e Antônio Almeida – com direito até a um “ôôôô, aurora” –, levada ao acetato em 1952 pelos mesmos Joel e Gaúcho. No fim da década, em 1958, Nahum Luiz e William Duba fariam alusão à marchinha de Roberto e Mário, tomando emprestado a melodia do início desta para criar “Não seja Aurora”, mais uma marcha, gravada por Bob Lins. Já Airton Ávila reutilizaria a expressão “se você fosse sincera” no samba “Aurora”, que teria dois registros lançados em 1964, um feito por Radamanto e outro por Carminha Mascarenhas.

    Enquanto isso, a “Aurora” famosa entraria com tudo na época dos vinis, através de inúmeras coletâneas carnavalescas das quais faria parte: uma das primeiras foi o LP de 10 polegadas “Sucessos de Carnaval (Carnaval antigo)” (1954), de Jorge Goulart, Emilinha Borba e Gilberto Milfont. Mas a marchinha, abusada como ela só, também passearia por discos de múltiplos artistas, ligados ou não à festa de Momo. O bossanovista Luiz Bonfá, por exemplo, a colocaria ao lado de standards da música universal em seu LP “Ritmos continentais”, de 1958; também Jair Rodrigues a encaixaria num pot-pourri de marchas (transformadas em sambas) no álbum “Jair de todos os sambas nº 2”, em 1969. Dez anos depois, Martinho da Vila faria o seu medley de Carnaval – com “Aurora”, claro – no disco “Terreiro, sala e salão” (1979). Já no LP “Sucesso é pagode”, de 1986, o Grupo Pé No Chão enfileirou lado a lado, numa só faixa, várias musas carnavalescas: Madalena, Isaura, Emília, Helena, Aurora e Amélia.

    Repaginada pelo Trio Irakitan em “Nossa casa de chá chá chá”, de 1962, “Aurora” parece ter gostado da brincadeira, caindo no bailão em 1966 no LP “Uma brasa com Joni Maza”. A Turma da Pilantragem não resistiu e emprestou seu suingue para a antiga marcha em “O som da Pilantragem vol. 2”, de 1969. Claro que ela não poderia faltar no espetáculo “Sassaricando – E o Rio inventou a marchinha” – de Rosa Maria Araujo e Sérgio Cabral, encenado em 2007 no Rio de Janeiro –, onde ganhou a interpretação do gaiato Eduardo Dussek (veja a partir dos 15’15’’). E – sinal dos tempos – em 2014 se acabou no baile funk, com a gravação de Buchecha para o CD “Pancadão das marchinhas”.

    Até no Oscar ela foi parar! Não, a marcha não foi apresentada durante a cerimônia de premiação, que neste ano de 2025 caiu em pleno domingo de Carnaval, 2 de março. Mas foi uma delícia ver, no dia seguinte, “Aurora” ser parodiada espontaneamente em seu habitat natural. Num bloco de São Paulo, foliões e folionas pediram à ilustríssima senhorita Mikey Madison, escolhida Melhor Atriz pelo filme “Anora”, que restituísse a estatueta dourada a quem a merecia de fato – nossa Fernanda Torres, indicada por “Ainda estou aqui”:

    Se você fosse sincera, ôôôô, Anora
    Devolvia o nosso Oscar, ôôôô, agora!

    ***********

    Na imagem principal, o rótulo do disco Columbia 55250, lançado em dezembro de 1940 com a gravação original de “Aurora”, por Joel e Gaúcho. Reprodução da internet.

    título / autor
    interprete
    acompanhamento
    disco
    ano