<
>
/
 
0:00
10:00
author  
performer  
    minimize editar lista close

    Todos os esforços foram feitos no sentido de encontrar dados mais precisos sobre a autoria dessa obra. Qualquer informação será bem-vinda.

    Domínio público
    Clique no botão para baixar o arquivo de áudio

    Posts

    O cantor além das multidões: Acervo Orlando Silva traz novos olhares sobre o grande artista

    Pedro Paulo Malta

    play tracks

    Não são poucos os que dizem que Orlando Silva foi o maior cantor brasileiro de todos os tempos. E que durante sete anos – entre 1935 e 1942 – foi ainda mais: “Talvez o maior do mundo”, como afirma o jornalista e escritor Ruy Castro em seu livro “A onda que se ergueu no mar” (Cia. das Letras, 2001). “Não há nenhum ufanismo nessa afirmação. É só comparar os seus discos dessa fase com os da concorrência internacional no período: Bing Crosby, Al Bowlly e Charles Trenet.”

    Quem quiser começar por ouvi-lo, aqui na Discografia Brasileira estão as gravações não só deste período, como de outros – ao todo, são 459 gravações, entre sambas (217), valsas (92), marchas (67), canções (35), choros (dez), boleros (oito) e outros gêneros musicais, numa prova de que a versatilidade estava entre as qualidades do Cantor das Multidões, também conhecido como “o Cantor Com Uma Lágrima Na Voz”, pela maneira especial com que interpretava as canções românticas.

    Pois agora, além de ouvir este grande cantor, aos poucos torna-se possível também conhecer um pouco mais de sua vida pessoal, à medida em que o Acervo Orlando Silva vai sendo catalogado e digitalizado pela equipe de Música do Instituto Moreira Salles. O material, doado ao IMS em 2021 pela produtora Andrea Franco, sobrinha-neta do artista, é tão vasto quanto diversificado: tem 906 fotografias, 440 partituras e dezenas de letras de música (manuscritas ou datilografadas), além de cartazes, cartas, cachimbos, bengalas, medalhas, folhetos e documentos pessoais.

    Guardados de Orlando: um troféu, uma medalha, cartões de visitas e um busto / Acervo Orlando Silva / IMS

    O que os números não medem, mas está fartamente registrado na imprensa da época, é a história do menino do Engenho de Dentro que, logo que chegava da escola, trepava numa amoreira e brincava de cantar, que nem passarinho. “É o único que puxou ao José Celestino”, dizia-se na família, em referência ao pai, ferroviário de profissão e violonista por vocação, tendo tocado nas rodas de Pixinguinha, Donga e cia. “O violão, em seus maviosos dedos, não tocava; soluçava”, escreveu o memorialista Alexandre Gonçalves Pinto, vulgo Animal, no fundamental “O choro – reminiscências dos chorões antigos” (1936). No mesmo livro sabemos, também que o pai de Orlando, falecido durante o surto de Gripe Espanhola (1918), não chegou nem perto de ver o filho fazer história.

    Mas antes disso o menino – nascido há 110 anos, em 03-10-1915 – ainda teve que percorrer um longo caminho, especialmente após a mãe, D. Balbina, enviuvar mais uma vez e com seis filhos para criar, sendo Orlando o terceiro. Sua adolescência mal tinha chegado e foi-se a vida escolar, trocada pelo trabalho precoce e urgente de estafeta da Western e depois operário numa cerâmica, cortador de couro na fábrica de sapatos Bordallo e balconista da Casa Reunier, no Centro. Trabalhava nesta última quando, durante uma entrega, um acidente transformou sua vida: ao saltar de um bonde em movimento, um escorregão custou-lhe uma parte do pé esquerdo, decepada pelo veículo – o que o faria mancar pelo resto da vida.

    Pois foi durante os seis meses que passou na cama – quase sempre com o rádio ligado – que percebeu que a velha brincadeira de passarinho fosse talvez uma vocação. E assim, no vaivém de trocador de ônibus na linha 84 (novo emprego, logo que ficou de pé), era cantando que se distraía, distraindo também o português Conceição – motorista do ônibus e seu primeiro fã. Aos 17 anos, resolveu fazer um teste no rádio e se deu bem: foi aprovado pelo maior cartaz da época, Francisco Alves, que convidou-o a participar de seu programa na Rádio Cajuti. Estreia bem-sucedida (23-06-1934), apesar de um ajuste necessário – o aspirante precisou se opor ao nome artístico que tentaram lhe empurrar de última hora, Orlando Navarro: “No Engenho de Dentro me conhecem por Orlando Garcia da Silva.”

    Já atendia por Orlando Silva – “Nome bem brasileiro”, avalizou Orestes Barbosa no Café Nice – quando seu primeiro disco, na Columbia, chegou às lojas, às vésperas do carnaval de 1935. Mas o próprio artista considerava outro o seu 78 rpm de estreia – o 33.975 da Victor, que saiu em setembro daquele ano com duas composições de Cândido das Neves: a canção “A última estrofe” e a valsa “Lágrimas”. De fato, só aqui o público pôde perceber como o repertório romântico tinha a ver com aquele novo jeito de cantar, na medida entre Francisco Alves (“tem muita voz e não tem interpretação”) e Sílvio Caldas (“com pouca voz e muita interpretação”), como relembrou o próprio Orlando, já veterano, em entrevista ao produtor Zuza Homem de Mello (1978). “Assim entrei no meio deles dois e fui embora, entendeu?”

    Em ritmo de samba vieram logo outros sucessos iniciais, como “Chora cavaquinho” (de Waldemar de Abreu, o Dunga), gravado no finzinho de 1935, e composições de Noel Rosa que ele lançou já no ano seguinte, como “Pela primeira vez” (com Cristóvão de Alencar) e “Dama do cabaré”. Também do Poeta da Vila é “Cidade Mulher”, a marchinha gravada por Orlando que chegou às lojas de discos em agosto de 1936, às vésperas de sua ida para a Rádio Nacional, que estava prestes a ser inaugurada (12-09-1936) quando trouxe para seu cast o jovem talento, contratado em 01-09-1936, conforme anotado em sua carteira de trabalho, um dos itens sob a guarda do IMS, na pasta de documentos do cantor.

    Detalhes da carteira de trabalho / Acervo Orlando Silva / IMS

    Na Nacional, onde estreou no dia 16-09, consolidou a popularidade e se aproximou de Radamés Gnattali, o maestro-arranjador presente nas gravações dos primeiros grandes sucessos de sua trajetória, o samba “Juramento falso” e a valsa “Lábios que beijei” (ambos de J. Cascata e Leonel Azevedo), lançados em março de 1937. “Pedi ao Radamés para fazer o arranjo das duas e o Radamés excedeu-se”, contou, na entrevista a Zuza Homem de Mello. “Colocou umas cordas sofridas, uma flauta tiritando, criando um clima inesquecível.”

    E como se não bastasse o sucesso, veio outro maior em julho daquele mesmo ano, no disco Victor 34.181, com composições eternas de Pixinguinha dos dois lados: no A, o célebre “Carinhoso”, choro estilizado com letra de João de Barro que virou logo seu prefixo musical; e no B, a valsa “Rosa” (co-assinada por Otávio de Souza), cuja gravação exigiu de Orlando seu máximo apuro técnico, como ele lembrou algumas vezes em entrevistas. “Era música de flautista e sua interpretação requer fôlego e noção de colocação da voz. Caso contrário, cai do cavalo”, explicou em depoimento transcrito na biografia “Orlando Silva: o Cantor das Multidões”, de Jonas Vieira (Funarte, 1985). Era também a música preferida de sua mãe, D. Balbina.

    Na maré favorável, Orlando entrou em 1938 com boas apostas de sucesso para o carnaval, entre as quais dois sambas até hoje lembrados e cantados nos bailes e nos blocos. Um deles era “Alegria” (Assis Valente e Durval Maia), mais belo dos sambas sobre samba, na modesta opinião do autor deste texto. O outro, “Abre a janela”, composição de Roberto Roberti e Arlindo Marques Jr. que Orlando definia como “meu primeiro sucesso carnavalesco”, apesar do disco lançado às vésperas da folia. Mesmo assim, deu a sorte de cair no gosto do bloco Destemidos da Casa da Moeda, cujo desfile na Avenida Rio Branco era o “termômetro musical no Rio pro carnaval”, como disse a Zuza Homem de Mello. “Entraram na avenida cantando ‘Abre a janela’ e eu chorei de emoção.”

    Mais pro clima de quarta-feira de cinzas era “Caprichos do destino” (Pedro Caetano e Claudionor Cruz), a valsa insuperavelmente triste que saiu na voz de Orlando logo após o carnaval. Ele ainda saboreava o sucesso do lançamento quando foi convidado por Custódio Mesquita para assistir a um espetáculo no Teatro Recreio: o pianista queria que ele conhecesse duas composições que havia feito com Mário Lago e eram cantadas no teatro pelo tenor Armando Nascimento. “Quando ele cantou o ‘Nada além’ naquela gritaria dele, fechei os olhos e ouvi. Pensei: a música não é nada disso”, relata o cantor, ainda na entrevista a Zuza, antes de dizer que coube a Radamés Gnattali criar os arranjos de ambas as músicas – a outra era “Enquanto houver saudade” – lançadas num 78 rpm em julho.

    Detalhe do suplemento 'Canta Brasil' / Acervo Orlando Silva / IMS

    Foi por essa época que recebeu o apelido de Cantor das Multidões, criado pelo locutor Oduvaldo Cozzi após o retorno de uma viagem a São Paulo, onde passou a se apresentar com frequência a partir de 1938. Por lá – onde “Nada além” era a música mais pedida – aproveitou para divulgar mais um lançamento desse ano, “Errei, erramos”, samba de Ataulfo Alves. Um dos compositores mais presentes no repertório de Orlando, também de Ataulfo – com Mário Lago – é o samba “Atire a primeira pedra”, grande sucesso do carnaval de 1944.

    Mas entre os lançamentos carnavalescos de Orlando nenhum fez tanto sucesso quanto “A jardineira” (Benedito Lacerda e Humberto Porto), a marchinha mais cantada de 1939, embora derrotada no concurso de músicas carnavalescas daquele ano pela hoje pouco lembrada “Florisbela” (Nássara e Frazão). “‘A jardineira’ é todo ano, já atravessou gerações”, orgulhou-se seu primeiro cantor no depoimento a Zuza. “Quando o baile tá meio frio, o maestro manda ‘A jardineira’ e até a mesa sai dançando.” Do outro lado do 78 rpm vinha outro sucesso: “Meu consolo é você” (Nássara e Roberto Martins), o samba que, se dependesse de Mr. Evans, o folclórico diretor artístico da Victor, não teria sido lançado na folia, por ser triste demais para seu gosto.

    O Cantor das Multidões ainda frequentou outras vezes o topo das paradas de 1939, como no mês de julho, quando lançou “Sertaneja”, a canção que se tornou um de seus maiores sucessos e, até hoje, volta e meia é incluída nas coletâneas da chamada música caipira, embora seu compositor fosse carioca de Paquetá. Já no carnaval seguinte, mais uma vez um disco de Orlando Silva – o Victor 34.544 – trazia dois sucessos vitalícios, cada um representando um dos ritmos preferidos dos foliões cariocas: a marcha “Malmequer” (Nilton Teixeira e Cristóvão de Alencar) e o samba “A primeira vez” (Bide e Marçal).

    Sucessos de Orlando Silva numa revista de Belém do Pará em novembro de 1941 / Acervo Orlando Silva / IMS

    Este último foi um dos sambas de seu repertório que frequentaram a década de 1960 regravados por um de seus ouvintes mais atentos e devotados, João Gilberto. Junto com os sambas de Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Carlos Lyra e tantos outros, o baiano amaciou sucessos de seu mestre bossa nova adentro, como os sambas “Preconceito” (Marino Pinto e Wilson Batista) e “Aos pés da cruz” (de Marino com Zé da Zilda). Já o samba-choro “Curare” (Bororó), que João regravou algumas vezes a partir de 1980, foi outro que ele aprendeu ouvindo os discos de 78 rpm de Orlando Silva, para ele “o maior cantor do mundo”.

    E quem há de desdizer João Gilberto? Ninguém, pelo menos até 1942, quando acabaram-se seu contrato com a Victor e – segundo especialistas como Ruy Castro – a plenitude de seu canto. “A voz, antes limpa e brilhante, mostra-se um pouco anasalada e sombreada de tons opacos (beirando o semitom), salvando-se pela magnífica interpretação — dom que nunca o abandonou”, avalia o biógrafo Jonas Vieira, para quem os anos dourados de Orlando duraram um pouco mais, até 1945, quando já se podia perceber, “sem muito esforço auditivo”, que sua voz não era a mesma. “Suas gravações já não apresentam mais o mesmo nível do período anterior.”

    Em meio a uma relação intensa e turbulenta com a atriz Zezé Fonseca, o vício pelas drogas – a cocaína e o álcool – seria a principal causa deste precoce ocaso artístico de Orlando Silva. Ou, segundo o jornalista João Máximo, n’O Globo (03-10-2015), “a um estado de degradação cujo momento mais cruel bem pode ser o testemunhado pelo compositor Roberto Martins: ajoelhado aos pés de um dos irmãos Meira, pioneiros do tráfico no Rio, o cantor suplica por uma dose, enquanto o bandido, às gargalhadas, pergunta: ‘Cadê o cantor das multidões?’”

    Terminada a fase gloriosa na Victor, Orlando se transferiu para a Odeon, onde permaneceu por sete anos (1942-49), antes de começar um período de gravações em selos variados, quase sempre em períodos curtos – exceto pelos contratos que assinou com a Copacabana (1953-55), a própria Odeon (1956-59) e a RCA Victor, novo nome de sua antiga gravadora (1960-62). Neste período, não só lançou músicas inéditas como também, e sobretudo, regravou os maiores sucessos.

    Músicas como “A felicidade já perdeu seu endereço” (Pedro Caetano e Claudionor Cruz), “Boêmio” (Ataulfo Alves e Wilson Falcão), “Mágoas de caboclo” (Claudionor Cruz e Pedro Caetano), “Mentirosa” (Custódio Mesquita e Mário Lago), “Número um” (Benedito Lacerda e Mário Lago), “Página de dor” (Cândido das Neves e Pixinguinha) e “Súplica” (Otávio Gabus Mendes. José Marcílio e Deo), só para ficar nas músicas não mencionadas anteriormente.

    A estabilidade com Maria de Lourdes, sua companheira, após o romance turbulento com Zezé Fonseca / Acervo Orlando Silva / IMS

    Já o sossego conjugal – válido a partir de 1947, quando se casou com Maria de Lourdes Franco, sua companheira até o fim da vida – refletiu-se na saúde e também na vida pessoal, como se pode perceber pela quantidade de fotografias do casal (em viagens, mexendo panela no fogão, pintando o apartamento...) presentes no Acervo Orlando Silva. A estabilidade se refletiu também em sua discografia, com a gravação e o lançamento de novos LPs a partir dos anos 1950, quase todos referenciados em sua “era de ouro”.

    E no encerramento desta discografia está justamente o álbum que Zuza Homem de Mello produziu na RCA Camden (“Série Documento”, de 1978) alternando gravações antigas e falas de Orlando – algumas delas aproveitadas neste post. “Eu estou, como você diz, tranquilão”, disse o veterano cantor, neste depoimento, num trecho sobre a vida tranquila que levava na maturidade, no bairro carioca da Ilha do Governador. “Agora é esperar a chamada do divino e aguardar com muita calma, muita paz, muita tranquilidade.”

    Orlando Silva tinha 63 anos quando faleceu (07-08-1978), no Hospital Gaffrée e Guinle, de complicações de um acidente vascular cerebral sofrido em casa. No sepultamento, realizado no Cemitério São João Batista, as homenagens tiveram grandes sucessos cantados em coro pelos fãs: “Carinhoso”, “Lábios que beijei” e “Malmequer”. Presente na despedida, Zuza também prestou sua homenagem, com uma fala registrada no obituário do Jornal do Brasil (30-10-78), assinado por José Neumanne Pinto: “Orlando Silva é o maior cantor de todos os cantores da música popular brasileira. Nunca houve ninguém semelhante a ele ou que dele se aproximasse muito.”

    Na foto principal: Orlando Silva em casa / Acervo Orlando Silva / IMS

    title / author
    performer
    accompaniment
    album
    year