São São Paulo, meu amor! Túmulo do samba (só que não), avesso do avesso do avesso do avesso, pauliceia desvairada, terra da garoa, selva de pedra, locomotiva do Brasil... Não importa como a cidade tenha sido chamada por Tom Zé, Vinicius, Caetano, Mário de Andrade e tantos outros: para muitos, paulistanos ou não, ela é simplesmente São Paulo, Sampa, a cidade que não dorme. Por entre os arranha-céus, nas calçadas, nas esquinas e nos arredores das suas famosas ruas e avenidas – Ipiranga, São João, Paulista, Oscar Freire, Galvão Bueno, 25 de Março, Treze de Maio, Aurora, Augusta, Angélica e Consolação, entre tantas outras –, artistas de toda a parte fizeram, através dos anos, a sua exaltação em forma de música, criando uma trilha sonora bastante peculiar para a capital que alia tradição, modernidade e vanguarda.
A história fonográfica da cidade teve início há mais de cem anos. “‘Saci’ pode ser considerada uma das primeiras gravações paulistanas, e foi registrada provavelmente em 1913, pelo Grupo do Canhoto, em um estúdio improvisado em São Paulo pela Casa Edison”, revela Camila Koshiba Gonçalves no livro “Música em 78 rotações: ‘discos a todos os preços’ na São Paulo dos anos 30” (Alameda, 2013), referindo-se à polca de João Batista do Nascimento. A autora conta que “a Casa realizou, na capital paulista, algumas gravações com Giuseppe Rielli, com Grupo Francisco Lima, com a Banda da Força Policial da cidade, com o Grupo do Ulisses, entre outros”. É dessa época o “Maxixe curtindo”, de Marcello Tupynambá, composto para a revista teatral “São Paulo futuro”, de 1914, e gravado no ano seguinte pelo Grupo Odeon.
Data também desse período o surgimento de um clássico do repertório popular – e uma das valsas mais bonitas de todos os tempos. “Nenhuma música evoca melhor a velha São Paulo provinciana do início do século do que a valsa ‘Rapaziada do Brás’”, afirmam Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello no primeiro volume de “A canção no tempo” (Ed. 34, 1997). Seguem os autores: “Composta em 1917 pelo futuro maestro Alberto Marino, então um menino de quinze anos, ‘Rapaziada do Brás’ se tornaria conhecida no final da década seguinte, quando teve seu primeiro disco” – mais especificamente em 1926, ao som do violino do próprio autor. A lindíssima criação de Marino iria estimular outros autores a homenagear, também em forma de valsas, outras “rapaziadas” paulistas: do Bom Retiro (1926), do Ipiranga (1932), da Mooca, meu! e de São Caetano (ambas em 1936), de Santana (1938), de Rio Preto (1939), de Piracicaba (1954) e de Pirassununga (1964).
Em 1927, houve a implementação, no Brasil, do recurso da captação elétrica de sons, em substituição ao processo mecânico utilizado até então. “A cidade de São Paulo passou a abrigar estúdios de gravação permanentes, e o repertório tornou-se mais variado”, explica Camila Koshiba Gonçalves. A “São Paulo de Anchieta” – que Nicola Paone e Vanda Ardanuy exaltaram em 1954 respectivamente num baião e num samba homônimos que evocavam o padre José de Anchieta, fundador da vila de São Paulo dos Campos de Piratininga, em 25 de janeiro de 1554, ao lado de outros jesuítas, como Manuel da Nóbrega – desde cedo aprendeu a contar e a cantar sua história. Episódios marcantes da vida política local – que teriam reflexos em todo o país – chegariam aos 78 rotações, como a Revolta Paulista de 1924 e a Revolução Constitucionalista de 1932.
Os discos obviamente não deixariam de recordar os primórdios da história de São Paulo: a saga dos violentos bandeirantes, desbravadores dos sertões brasileiros nos séculos XVI e XVII, responsáveis por expandir os limites do nosso território ao custo de muito derramamento de sangue negro e indígena. Tendo por patriarca o controverso João Ramalho, genitor de inúmeros descendentes, considerado o “pai dos paulistas” e o “fundador da paulistanidade”, os sertanistas, que tantas mortes causaram em sua heroica missão, ganhariam do escultor Victor Brecheret um colossal “Monumento às Bandeiras”, inaugurado em 1953.
Também a nossa música popular celebrou em diversas ocasiões a “São Paulo bandeirante” (marcha de Duque e Benedito Camargo gravada em 1935 por Augusto Calheiros) e os principais nomes dessas expedições, lembrados, por exemplo, na moda de viola “O bandeirante Fernão” (1953), de Ado Benatti, Campos Negreiros e Carreirinho: Fernão Dias Paes Leme (o caçador de esmeraldas), José Dias, João Bernal (ou Bernardes), Borba Gato e outros. No entanto, os negros e indígenas subjugados por eles, igualmente responsáveis pela construção da cidade, nunca mereceram semelhantes homenagens, apesar de retratados na monumental escultura de Brecheret (mas como escravizados).
Sede da Semana de Arte Moderna em 1922, a capital foi chamada de “Pauliceia desvairada” por Mário de Andrade no título de seu livro de poemas – um marco do modernismo – lançado neste mesmo ano. A expressão “pauliceia” não era nova: já havia sido inclusive usada no título de uma mazurca gravada em 1904 pela Banda da Casa Edison. O carioca Ernesto Nazareth também recorreu ao termo: após viajar em turnê pelo estado em 1926, quando obteve uma calorosa acolhida do público paulista, publicou o tango brasileiro “Pauliceia, como és formosa”, lançado em disco em 1927 pela Orquestra Pan American.
“São Paulo, terra da garoa, terra das bandeiras, terra do café”, exalta Paraguassu, o Italianinho do Brás. Em “São Paulo da garoa”, de 1934, ele é categórico: “Dizem que não és do samba, mas tu foste sempre bamba”. O ritmo, comumente associado à Bahia e ao Rio de Janeiro, também faz parte do repertório dos compositores da capital bandeirante. Foi através de um sambinha (meio abaionado, vai...) que Alvarenga e Ranchinho deixaram sua homenagem em 1944, numa música cujo refrão é conhecido até por quem não nasceu lá: “Ê ê ê ê São Paulo, ‘Ê São Paulo’, São Paulo da garoa, São Paulo, que terra boa!”.
Foi quando voltava de São Paulo dirigindo seu Buick que Francisco Alves sofreu o acidente fatal que o vitimou, em setembro de 1952. No ano anterior, ele deixaria registrado em disco o samba-exaltação “São Paulo, coração do Brasil”, parceria sua com David Nasser, que Carlos Galhardo também gravaria logo em seguida. O próprio Galhardo levaria ao acetato, em 1956, seu canto de amor à antiga “São Paulo dos lampiões”, através de um gostoso maxixe-baião de Victor Simon.
Os encantos da cidade atraíram os integrantes do Trio Gaúcho, que, “Percorrendo São Paulo” em 1952, fizeram um verdadeiro tour de force por quase 50 localidades, todas elas citadas na letra do maxixe. Mais cansativo, só o périplo da mulher que em 1953 percorria os bares atrás do amado todas as noites, e que depois da “Ronda” voltava pra casa abatida, desenganada da vida. A história do samba-canção, um dos mais famosos do Brasil, criação dos paulistanos Paulo Vanzolini (seu autor) e Inezita Barroso (sua intérprete original), foi contada neste post de 2023.
São Paulo dá café (como diria Noel Rosa), dá samba e também dá choro. Que o diga o lendário Conjunto Atlântico, liderado por Antônio D’Auria e formado, em épocas diferentes, por feras como Juracy Wey (o Barão), Amador Pinho, Waldomiro Marçola, Oswaldo Bitelli, Jayme Soares, Lázaro Teixeira e os irmãos Izaías e Israel Bueno de Almeida. O grupo gravaria apenas um disco em 78 rpm, em 1958, com duas músicas de Zequinha de Abreu, “Levanta poeira” e “Sururu na cidade”. O gênero instrumental – que inspirou compositores e compositoras da terra, como Garoto e Lina Pesce – passeou com desenvoltura pelos quatro cantos da capital: Luiz Americano tocou um “Chorinho no Pacaembu”; Aloysio Figueiredo levou para a “Avenida São João” uma composição de Júlio Nagib; e a personalíssima Isaurinha Garcia chorou no bairro de “Tucuruvi”.
O quarto centenário de São Paulo (1954) foi bastante festejado musicalmente. Já em 1953, começaram a surgir homenagens fonográficas, como a de Ado Benatti e Poly (Ângelo Apolônio), o baião “Terra de Anchieta”, pelas vozes de Cascatinha e Inhana. A letra menciona a bandeira das “Treze listas”, evocada ainda por João Pacífico – ícone da música caipira do estado – numa marcha-hino gravada por Nelson Gonçalves na mesma época e lançada no ano da efeméride.
Da enxurrada de composições exaltando a data, houve uma que se destacou: “Um dobrado que chegou às paradas de sucessos e tornou-se campeão em vendagem de discos. (...) ‘São Paulo quatrocentão’ é um dobrado diferente, muito bem construído, e que tem como autores dois de nossos maiores instrumentistas populares – Garoto e Chiquinho do Acordeom”, explicam Zuza Homem de Mello e Jairo Severiano. O próprio Garoto (Annibal Augusto Sardinha) levou, com sua bandinha, a música ao disco em 1953. Em fevereiro de 1954, chegou às lojas a versão letrada por Avaré (Oscar Silva), na voz inconfundível de Hebe Camargo.
Também o carioca Vinicius de Moraes e o pernambucano Antônio Maria fizeram sua reverência à aniversariante no “Dobrado de amor a São Paulo”, ao qual Aracy de Almeida – parceira de ambos em muitas noitadas boêmias – deu vida na bolachinha: “São Paulo, quatrocentos anos / E eu, coitada, quatrocentos desenganos de amor / Eu daqui não saio mais (de São Paulo) / Isto aqui está bom demais (em São Paulo)”. A Dama do Encantado serviu de ponte na formação de uma dupla inusitada, Vinicius e Adoniran Barbosa: Aracy mostrou ao Poeta do Bixiga, com quem trabalhava na TV e na Rádio Record de São Paulo, uma letra que o Poetinha havia enviado a ela. Desta parceria, formada à distância, nasceu em 1957 o samba “Bom dia, tristeza”, lançado pela própria Aracy.
Pouco tempo depois, Vinicius seria o pivô de uma das grandes polêmicas da música popular – e o imbróglio envolveria justamente a terra dos bandeirantes. O poeta recordou o fato numa série de quatro crônicas intituladas “SP não é mais o túmulo do samba”, publicadas entre os dias 10 e 17/01/1965 em sua coluna no Diário Carioca. Na primeira delas, disse ele que, por volta de 1960, precisou ir com urgência de São Paulo para o Rio. Já a bordo do táxi que o levaria, e “numa fossa bárbara”, resolveu dar uma parada na boate Cave, raciocinando: “Se eu tomar umas e outras a viagem vai ser melhor, porque aí durmo mesmo...”. Ao entrar, foi logo reconhecido por “uns grã-finos paulistas, já meio no óleo”, que o convocaram à mesa. “Como falavam alto, não tinha ainda podido ouvir direito a música do conjunto que tocava”. Ao distinguir o piano de Johnny Alf “em meio à barulheira”, foi até lá falar com ele.
“Aquilo irritou o grupo”, recordou-se Vinicius, explicando que, quando voltou à mesa, foi interpelado por um dos presentes, que criticou seu “mau gosto de trocar assim de companhia, ainda mais por um cara (Johnny Alf) que não tocava coisa com coisa, desafinando tudo e com aquelas harmonias todas erradas”. Vinicius então revidou: “Um sujeito que usa essa sua cara e esse seu bigode não tem direito de piar sobre música. Johnny Alf é um ótimo compositor e você é que não tem ouvido para entender as harmonias que ele faz!”. Levantou-se, foi até a direção do piano e fez ao amigo Johnny Alf a declaração famosa: “Meu irmãozinho, pegue sua malinha e se mande para o Rio de Janeiro, porque São Paulo é o túmulo do samba”.
“Eu, furioso, parti. Mas a frase ficou. Ficou e doeu no coração dos paulistas quando, dois anos depois, foi ressuscitada por um jornalista e provocou uma grande onda de reação pela imprensa. Hoje eu me penitencio dela publicamente (...)”, escreveu Vinicius, que demonstrou seu arrependimento em outras ocasiões. Ele ressaltava que havia, no entanto, um lado positivo na história: ela teria servido para provocar uma reação de São Paulo. A cidade acabaria mesmo abraçando o movimento da Bossa Nova, como demonstrariam os históricos shows que o radialista Walter Silva, o Pica-pau, promoveria no Teatro Paramount naquela década.
A frase saiu num momento de indignação, como Vinicius declarou. O poeta certamente não ignorava que em São Paulo havia não só bons sambas, como excelentes sambistas: Vassourinha, Risadinha, Agostinho dos Santos, Vadico (parceiro de Noel), Germano Mathias... e, claro, Adoniran Barbosa, a mais completa tradução – com a licença de Caetano, que assim definiu Rita Lee em “Sampa” – não só do samba paulista, mas da própria cidade. Esta foi personagem de diversas composições suas, como “No morro da Casa Verde”. O samba solene e enfezado ganhou, em 1959, as vozes de Aracy de Almeida e de um verdadeiro patrimônio cultural da capital bandeirante: o grupo Demônios da Garoa.
“(...) ninguém gosta de São Paulo tanto quanto eu”, escreveu Vinicius em O Cruzeiro de 09/02/1963. Na verdade, apesar de uma certa “rivalidade” – ela ainda existiria hoje em dia? –, há muitos cariocas que, como o Poetinha, adoram São Paulo, e vice-versa. Mas as diferenças regionais ajudaram a criar uma atmosfera de competição e antagonismo que a nossa música popular não deixaria de registrar, como no coco “São Paulo X Rio”, de João Grimaldi e Gordurinha, levado ao disco por este último em 1955, em dupla com Léo Vilar. As particularidades das duas capitais foram realçadas pelo jornalista e compositor Denis Brean e por David Nasser no samba “Um paulista no Rio”, gravado em 1954 por João Dias, apontado por Francisco Alves como seu legítimo sucessor.
Imigrantes chegados de todas as regiões do Brasil foram acolhidos pela terra da garoa, assim como os do exterior: italianos, portugueses, espanhóis, alemães, japoneses – salve o lindo Bairro da Liberdade! –, sírios, libaneses, viajantes de diversas nacionalidades enfim, que deixaram sua marca na cultura, na arquitetura, nos esportes, na culinária etc. Impossível pensar no Bixiga, por exemplo, sem suas famosas cantinas italianas. Para homenagear os estrangeiros que ajudaram a construir a cidade, nossa playlist traz duas composições bem festeiras – e que casam muito bem com São Paulo: “Funiculì funiculà”, tarantela de Luigi Denza com letra de Giuseppe “Peppino” Turco (“Vamos, vamos, para o topo vamos já!”), aqui interpretada pelo tenor Manrico Patassini em gravação de 1961: Jamme, jamme 'ncoppa, jamme jà / Jamme, jamme 'ncoppa, jamme jà / Funiculì, funiculà, funiculì, funiculà / 'Ncoppa, jamme jà, funiculì, funiculà! E a tradicional “Tarantela napolitana”, solada em 1960 pela sanfona de Uccio Gaeta, que em 1969-1970 trabalharia como ator na novela “Nino, o italianinho”, da TV Tupi.
Capital multicultural, São Paulo contempla, em sua trajetória, uma parcela importante da própria história da arte do Brasil. Dela fazem parte seu imponente Theatro Municipal (inaugurado em 1911), a belíssima Sala São Paulo (aberta em 1999), os programas de auditório irradiados ao vivo, as canções surgidas no teatro de revista e nos famosos musicais do Teatro de Arena, as escolas de samba, os Festivais da Velha Guarda de 1954 e 1955, os Festivais de Música Popular Brasileira das TVs Excelsior e Record – a edição de 1968 foi vencida por Tom Zé com “São São Paulo” –, as Bienais do Samba de 1968 e 1971, os agitos da turma pioneira do rock brasileiro – e seus primeiros rei e rainha, Sérgio Murilo e Celly Campello, eleitos em 1962 –, entre tantas outras manifestações artísticas e musicais.
Que não param de brotar de ponta a ponta no berço do Modernismo e da Vanguarda Paulista: a velha/nova cidade que, prezando suas tradições, nunca deixou de olhar e andar para a frente. Afinal, como bradou Miguel Gustavo em 1961, através da bela e potente voz de Silvana de Oliveira: “São Paulo não pode parar”!
Foto: reprodução da revista A Cigarra (edição de junho de1967), na qual vemos Denis Brean, Noite Ilustrada, Isaurinha Garcia, Adoniran Barbosa e César Roldão Vieira em fotografia de Ronaldo Moraes.