O que se leva dessa vida
É o que se come
É o que se bebe
É o que se brinca, ai ai...
Assim que soube que Cristina havia partido, abri a primeira do Domingo de Páscoa, ainda que faltassem umas três horas pro horário regulamentar das geladas – meio-dia. O samba de Pedro Caetano foi o primeiro que veio na memória: pelo prazer com que cantava esses versos (seu retrato purinho) e também porque, do outro lado da moeda, quanta coisa boa ela deixou por aqui, além da saudade. Uma discografia irretocável em primeiro lugar. Uma carreira sem concessões. E um repertório incrível, formado sobretudo por sambas de terreiro de compositores ligados às escolas de samba (não só os da sua Portela) e músicas da chamada era do rádio.
A quem se chegasse e demonstrasse interesse por esse repertório, não hesitava em passar adiante os sambas que sabia, fosse cantando nas rodas ou gravando fitas cassete. Logo que nos conhecemos (no fim dos anos 1990, num pós-show no Bar Tangará, Cinelândia), fui um desses felizes receptadores de fitinhas temáticas a cada novo encontro – uma com compositores portelenses, outra de Cartola, a turma do Estácio, Noel Rosa, Mauro Duarte, Pedro Caetano... Numa dessas conheci “O que se leva dessa vida”, entre tantos outros sambas.
Na amizade que se estreitava com ela, estreitava-se também minha relação com o samba. Através das histórias, de cada novo compositor que ela trazia pro meu radar e da maneira como ensinou aquele rapazinho com pouco mais de 20 anos a ouvir. Me lembro de uma vez em que falávamos sobre os cantores de bossa – Ciro Monteiro, Aracy de Almeida, Mário Reis, Isaurinha Garcia... – e disse a ela que me incomodava com o berreiro do Francisco Alves.
Uma semana depois, abriu o zíper da bolsa e tirou uma fitinha com sucessos do Rei da Voz. “Presta atenção em como ele cantava bonito”, avisou. “Dizem que não fazia as músicas que assinava como compositor, mas musicalidade nele era mato. Ouve só esses sambas aqui, as variações de melodia que ele inventa nas repetições.” Os sambas eram “Você chorou” (Brancura) e outro que ela adorava, “Adeus, mocidade” (Roberto Martins e Benedito Lacerda), tamanha a alegria com que cantava a segunda parte:
Amei bastante
Fui inconstante
Por isso eu digo
Mocidade, adeus
Esse era um dos sambas que cantávamos no bloco final de “O samba é minha nobreza”, espetáculo e CD produzidos por Hermínio Bello de Carvalho no início de 2002, tendo Cristina como figura central e, em torno dela, um time de músicos tarimbados – dirigidos por Paulão 7 Cordas – e alguns aspirantes ao samba. Entre estes estava eu, já então ouvinte aplicado desse repertório que Cristina ressuscitava pros novos, que, por sua vez, praticavam na Lapa.
Desse resgate feito por ela veio boa parte dos sambas do “Nobreza”, entre eles os ótimos “Comigo não”, que ela interpretava com indisfarçável prazer (sublinhando as queixas da personagem), e “Marido da orgia”, gravado por ela no LP “Cristina” (1981) e que, no espetáculo, era cantado pela discípula Mariana Bernardes. O compositor de ambos é Ciro de Sousa, mestre das crônicas em forma de samba (no caso, o samba-choro, sua especialidade) e um dos mais divulgados por Cristina em suas fitinhas.
Pouco depois do fim da temporada, bolamos um show em homenagem a Nelson Cavaquinho – outro que ela vinha me aplicando, agora por meio de CDs caseiros – e lá fomos nós pro Centro Cultural Carioca (de saudosa memória) novamente com a direção musical de Paulão. Desse repertório, dois sambas me deixaram especialmente encantado. Um deles era o que encerrava o show, “Minha fama”. O outro, “Aquele bilhetinho”, ela já tinha gravado em 1986, num disco em tributo a Nelson.
Nosso amigo Lefê Almeida, super produtor de shows, contava que o sambista adorou a interpretação dela, especialmente pela maneira sentida como ela interpretava os versos finais:
Pensei que fosses
Mendigar os meus carinhos
Ai, ai, ai, meu Deus,
Minha vida tem sido
Um rosário de espinhos
“Que lindo rosário, hein, comadre?”, disse o veterano mangueirense, segundo Lefê, ainda na porta do estúdio.
“Aquele bilhetinho” também entrou no repertório do show seguinte que montamos, agora com Alfredo Del-Penho agregado ao time e a participação do pesquisador Paulo Cesar de Andrade, nosso querido amigo, na montagem do roteiro. Nesse show, apresentado no Teatro do Sesi, depois no CCC e, por fim, no Sesc Pompeia (São Paulo), prestávamos homenagem ao cantor Ciro Monteiro, com um super repertório de sambas lançados por ele lá nas décadas de 1930, 40, 50... – dos grandes sucessos a sambas menos conhecidos que ela adorava.
Desses, me lembro especialmente de “Ai, mãezinha” (Geraldo Pereira), que cantei incentivado por ela, e outros três que ela mesma interpretava e desde então entraram pra sempre no meu repertório: “Meu trabalho”, do portelense Alvaiade, “Sim, sou eu” (Ataulfo Alves) e “O vestido que eu dei” (Pedro Caetano e Alcir Pires Vermelho). Também de Pedro Caetano era o telecoteco “Foi uma pedra que rolou”, que Cristina já havia gravado (no LP de 1981) e eu e Alfredo gravaríamos no nosso primeiro disco de dupla, “Dois bicudos” (2004).
Recordações de Cristina: os shows em tributo a Nelson Cavaquinho (roteiro manuscrito de Cristina) e Ciro Monteiro (folder do Centro Cultural Carioca, filipeta, roteiro com anotações e partitura de 'O que se leva dessa vida') e o espetáculo 'O samba é minha nobreza' (ingresso e filipeta). Acervo pessoal de Pedro Paulo Malta
Já no show seguinte, um tributo a Vinicius de Moraes, nós os aprendizes nos emocionamos com ela cantando “Quando tu passas por mim” (do poeta com Antônio Maria), que ela tinha gravado tão lindamente no songbook do poeta (1993). E depois nos divertimos em trio cantando “Loura ou morena”, um fox lá do começo da década de 1930 que está entre as primeiras composições de Vinicius – aqui parceiro de Haroldo Tapajós.
Ambas as músicas frequentavam o repertório dela desde a infância, quando Miúcha, a mais velha dos sete filhos de Maria Amélia e do historiador Sérgio Buarque de Holanda, organizava os irmãos num coral. Além de Cristina, a caçula, também participavam das cantorias suas irmãs Ana Maria (vulgo Baía, em artes Ana de Hollanda, futura cantora e ministra da Cultura), Maria do Carmo (vulgo Piii, futura fotógrafa) e o irmão Francisco, que logo se tornaria conhecido como Chico Buarque. Vinicius, amigo da família e frequentador da casa, era entusiasta das brincadeiras musicais da família dó-ré-mi.
Outro era o cientista Paulo Vanzolini, compositor nas horas vagas que em 1967, ao lançar o LP “Onze sambas e uma capoeira”, convidou Cristina a estrear como cantora, interpretando o samba “Chorava no meio da rua”. Já em 1968 foi a vez da segunda gravação dela, dividindo com Chico a interpretação de “Sem fantasia”, samba de autoria dele, que teria outras composições lançadas por Cristina – “Bastidores” (1980) e “Meu guri” (1981).
Já Sergito (Sérgio Buarque de Holanda Filho, futuro professor de Economia da USP) não participava do coro, mas contribuía de outra forma para o ambiente artístico. Trazia para casa sambas de Noel Rosa, Ismael Silva, Ataulfo Alves e cia em discos antigos que garimpava por São Paulo. É provável que “Arrependido”, o samba que um dia Cristina cantaria com o próprio Ismael (autor dele, com Nilton Bastos e Francisco Alves) na TV Cultura, tenha chegado nesses achados de Sergito.
Cristina em família: nos anos 1950, no colo de Sérgio Buarque de Hollanda (com os irmãos Sergito, Álvaro e Chico) e 1970, com Ana de Hollanda, os pais (a sobrinha Bebel abraçada por Maria Amélia), Álvaro, Sergito (de barba), Chico e Piii (agachada, de vermelho). Reproduções do acervo de Chico Buarque / Instituto Antônio Carlos Jobim
E também os sambas de Zé da Zilda que ela adorava. Como “Jura” (Zé da Zilda, Marcelino Ramos e Rodolfo Macedo), que ela gravou em 2007, com o conjunto Terreiro Grande – dos amigos-discípulos que fez em São Paulo e eram (são) igualmente loucos por ela. Ou então “Amar é um prazer” (de Zé com Antônio Almeida), no qual adorei conhecer o substantivo “chiquê”, ouvindo Cristina cantar no segundo disco dela, o maravilhoso “Prato e faca”, do ano em que eu nasci (1976).
Do mesmo recorte temático é “Quebrei a jura” (Haroldo Lobo e Milton de Oliveira), samba que Cristina gravou em 1994, no disco “Resgate”, e para mim ficou como mais um prefixo dela, tamanho o prazer – e a fisionomia sapeca – com que cantava assim:
Quebrei a jura que fiz, quebrei
De deixar a orgia e me regenerar
Eu quis viver do amor, mas não pôde ser
Tornei, tornei a voltar
Orgia, orgia, sempre foi e será o meu lar
A gravação original desse samba, lá de 1938, era de Aracy de Almeida, simplesmente a preferida de Cristina. Ou “a maior cantora que já teve”, como definiu para mim e para Rodrigo Alzuguir no documentário que fizemos sobre Aracy para a Rádio Batuta. Do repertório dela Cristina regravou muitos sambas, entre eles “Sou eu que dou as ordens” (Heitor dos Prazeres), no já citado “Prato e faca”, e “Gênio mau” (Wilson Batista e Rubens Soares), no CD “Ganha-se pouco mas é divertido” (2000).
Homenageado deste CD (meu preferido dos 14 de carreira que ela lançou), o compositor Wilson Batista foi outro grande do samba que conheci através dela. Tanto por meio das fitinhas e CDs quanto pelas composições dele que gravou, desde 1978, quando cantou o lindo “Flor da Lapa” no LP “Arrebém”, seu quarto álbum de carreira. Já Noel Rosa, outro de seus compositores mais queridos, ela gravou antes, em 1974, quando incluiu o samba romântico “Nuvem que passou” em seu disco de estreia, chamado “Cristina”.
Mas quando a entrevistei para um especial da Rádio Batuta, nos 70 anos dela, e pedi uma lista de dez músicas para comentarmos, ela escolheu “Felicidade”, outro samba pouco conhecido de Noel – aqui parceiro do jornalista René Bittencourt. A gravação original, de 1932, foi feita pelo próprio Poeta da Vila, “naquela vozinha pequena dele”, “cheio de sentimento”, como diz Cristina na entrevista. “E ele canta com uma voz assim meio emocionada, embargada...”
Pois para ela o que importava mesmo, tanto quanto escolher um samba bom e gabaritar a melodia, era cantar de verdade, ou seja, com uma interpretação condizente com a letra. Como ela fez, por exemplo, em “Sorrir” (Bide e Marçal), samba carnavalesco nos moldes de antigamente (animado, apesar do texto tristonho) que ela regravou em 1976. Neste mesmo disco, outra aula de interpretação de Cristina está em “Resignação”, samba sofrido e lindo de Geraldo Pereira.
“Ainda me aborreço com críticos ou desavisados que vinculam sua contribuição ao rótulo da pesquisa”, anotou o compositor, letrista e poeta Roberto Didio, da leva paulista de seus amigos-fãs-discípulos, no texto de despedida que escreveu em seu perfil no Instagram. “Perdemos uma especial CANTORA brasileira — dividia samba como ninguém! —, emoção timbrada no ar em holograma de artesania fina, doce.”
Quem desconfia ou ainda não entendeu sugiro ouvir sua interpretação de “Quantas lágrimas”, samba de Manacéa gravado por ela em seu primeiro disco e que se tornou seu maior sucesso. “Único, né?”, retrucava Cristina, risinho no canto da boca, zombando dessas grandezas típicas de verbete. Também não gostava de homenagens, de cerveja aromática (seu negócio era Brahma), de cantores que alteram melodias e “dessa gente hoje em dia que tem a mania da exibição”, como escreveu Noel Rosa, lá em 1933, muitas décadas antes do advento das redes sociais.
“Uma cantora avessa aos holofotes”, definiu o cineasta Zeca Ferreira, segundo de seus cinco filhos, num dos textos de despedida. “Como explicar um negócio desses em qualquer tempo? Mas como explicar isso nesse tempo específico?” Zeca assina a produção de dois discos da mãe, ambos gravados ao vivo em São Paulo: “Terreiro Grande e Cristina Buarque” (2007) e “Terreiro Grande e Cristina Buarque cantam Candeia” (2010).
Cristina com o conjunto Terreiro Grande (foto de Almeida Rocha) e na entrada da casa de Paquetá (foto de Pedro Paulo Malta)
No primeiro desses CDs, lá pelo meio do repertório estava “Não deixo saudade” (Roberto Martins e Manoel Ferreira), mais um belo samba pescado do repertório das antigas que ela regravou lindamente, com sua voz aguda de pastora misturada ao vozerio da turma de São Paulo, bem do jeito que gostava. “O que importa é o coro”, dizia, ainda segundo Zeca Ferreira.
Pois este samba é mais um que fala por ela, especialmente na segunda parte.
Navego e procuro encontrar felicidade
Pois quero viver longe, bem distante da cidade
Se acaso algum dia reclamarem minha ausência
Eu fui porque não tive paciência
Este último verso, não à toa, acabou entalhado numa placa de madeira que Cristina pendurou na entrada de sua casa, em Paquetá. Foi em 2008 que se mudou para a ilha, onde conseguiu enfim dar uma arejada na cabeça, que até ali vivia cheia da indiferença geral (do mercado, da imprensa, do público...) ao samba que tanto prezava. Avisou a todos que tinha pendurado as chuteiras, mas às vezes dava suas cantaroladas – no continente ou, de preferência, pertinho do sossego de casa, sempre que os amigos visitavam para tomar umas geladas, matar a saudade e cantar/ouvir sambas bonitos como os que ela ensinou.
Reuni alguns deles nesta playlist que deixo não só como registro de uma pequena parte do tudo que ela me ensinou, mas também como da saudade imensa que vamos sentir daqui pra frente.
Viva Cristina Buarque (23-12-1950 / 20-04-2025).
Foto principal: Pedro Paulo Malta