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    Cem anos de Ismael Netto, o ‘modernista nato’ que fundou Os Cariocas e fez história no samba-canção

    Pedro Paulo Malta

    tocar fonogramas

    Cantor, violonista, compositor, arranjador e um dos protagonistas do capítulo que antecede a bossa nova na história da música popular brasileira. Tudo isso e também um “modernista nato”, na definição de Zuza Homem de Mello em seu livro “Copacabana: a trajetória do samba-canção” (Editora 34, 2017). Com tantos predicados, é surpreendente que o nome de Ismael Netto seja tão pouco conhecido, mesmo por quem se interessa pelo passado da nossa música e, provavelmente, sabe cantarolar a valsa ensolarada que compôs há mais de 70 anos: “Rio de Janeiro, gosto de você / Gosto de quem gosta / Desse céu, desse mar, dessa gente feliz...”

    Pois Ismael de Araújo Silva Netto, apesar do aparente bairrismo, não era carioca e, sim, paraense de Belém, onde nasceu há um século (07-12-1925), mas de onde não guardava tantas lembranças. Tinha pouco mais de quatro anos quando veio com a família – os pais, Severino e Débora, um irmão e uma irmã – morar no Rio de Janeiro, instalando-se na Tijuca. Matriculado no Colégio Pedro II, ainda não pensava em música nos primeiros planos de futuro: “Eu desejava ser aviador”, contou ao Diário Carioca (03-07-1955), “mas minha família se mostrava receosa”. Uma cardiopatia, que depois descobriu ser forjada (“um truque que meus pais me aplicaram”), fez com que tivesse que mudar seu plano de voo.

    Felizmente, outras viagens habitavam sua imaginação de menino. “Desde a infância que eu sonhava com um conjunto musical”, como contou à Revista do Rádio (26-06-1951). “Organizava reuniões na beira das calçadas e com uma flauta de bambu dirigia os nossos pitorescos shows daquele tempo.” Atento ao som que vinha dos Estados Unidos, na adolescência ficou vidrado pelos “acordes diferentes” que ouvia nos discos de 78 rpm de seus conjuntos vocais preferidos: Os Modernaires, que cantavam com a orquestra de Glenn Miller, e os Pied Pipers, que se apresentavam com a de Tommy Dorsey.

    Foi nesses dois grupos – ambos masculinos, tendo mulheres como solistas – que se inspirou para criar seu próprio conjunto, em 1942, com o irmão e mais alguns amigos da Tijuca. “Ele fazia a primeira voz em falsete, eu fazia a segunda em falsete”, relembrou o tal irmão, o cantor e arranjador Severino Filho, em depoimento transcrito no livro de Zuza Homem de Mello sobre o samba-canção.

    Ao chegar na metade da década de 1940, Os Cariocas – como Ismael Netto batizou o conjunto – já tinham sua primeira formação: aos dois irmãos somaram-se Emmanuel Barbosa (o Badeco) na terceira voz, Jorge Quartarone (o Quartera) na quarta e Waldir Viviani nos solos ou dobrando outra voz. Com o duplo falsete nos arranjos arrojados de Ismael, o som deles em nada se parecia com o dos já estabelecidos Quatro Ases e Um Curinga, Anjos do Inferno e Os Namorados da Lua, de Lúcio Alves, que, quando ouviu os novatos, só exclamou: “O que é isso?!” “Os maestros não acreditavam que a gente pudesse cantar sem saber uma nota de música”, relatou Severino Filho, ainda na entrevista a Zuza Homem de Mello.

    Daí a surpresa geral onde quer que abrissem vozes: nas festinhas, nos clubes e no Instituto Lafayette, onde Seu Severino, pai dos irmãos Araújo Silva, trabalhava como professor. Também fizeram bonito no Papel Carbono, prestigiado programa de calouros da Rádio Clube, onde se apresentaram mais de uma vez, até saírem com o primeiro prêmio. Mas prêmio mesmo foi a aprovação no teste que fizeram depois para a Rádio Nacional, principal emissora do Brasil naquele início de 1946, quando foram contratados. Como atração fixa do programa Um Milhão de Melodias, Os Cariocas se tornaram conhecidos além das divisas do Rio de Janeiro e foram além.

    Em 1948, já estavam contratados também pela Continental, gravadora onde estrearam em disco, no 78 rpm de nº 15.893, que saiu em maio com dois arranjos de Ismael Netto. No lado A vinha o samba-boogie “Adeus, América” (Haroldo Barbosa e Geraldo Jacques), primeiro sucesso d’Os Cariocas. No B, o samba-canção “Nova ilusão” (José Menezes e Luís Bittencourt), também com boa repercussão, segundo Zuza Homem de Mello: “O impacto que essa gravação provocou no espírito dos jovens da classe média – se cabem confrontos – só pode ser comparado ao conquistado dois anos antes por Dick Farney, com seu ‘Copacabana’.”

    Na febre do baião, participaram das primeiras gravações de dois super clássicos de Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga lançados em outubro de 1949: “Qui nem jiló”, que interpretam com Marlene, e “Juazeiro”. Mas nas boates de Copacabana em que passaram a se apresentar a pedida, quase sempre, era samba-canção. Como “Nova ilusão”, sucesso deles no Mei-Ling, boate com decoração chinesa onde fizeram temporada em meados de 1948. Já na Tasca, por onde passaram em 1950, a mais pedida era “Marca na parede”, primeira composição gravada de Ismael Netto (em parceria com Mário Faccini), lançada em agosto daquele ano, com acompanhamento de orquestra dirigida por Lírio Panicali.

    Mas foi em ritmo de bolero que Ismael passou a frequentar as paradas de sucessos como compositor, no primeiro semestre de 1951, quando “Afinal” (parceria com Luiz Bittencourt) foi lançada em disco por sua noiva, a cantora Heleninha Costa, que, segundo Ney Machado, em sua coluna no jornal A Noite (02-04-1951), “deu uma interpretação magnífica” à canção. “Tem muito ritmo e muita harmonia esse bolero, com os metais sobressaindo e valorizando a música”, observou o crítico. “Excelente música dançante devido, principalmente, ao ritmo e vigor da orquestração.”

    Ismael e Heleninha eram colegas no cast da Rádio Nacional, onde se conheceram e começaram a namorar. O casamento deles, realizado em 04-12-1951, na Igreja de Nossa Senhora da Glória, no Largo do Machado, foi assunto nos jornais e revistas dedicados a cobrir os bastidores do rádio. No Diário da Noite (08-12-1951), o colunista Sílvio Autuori informou que o momento do beijo era a grande expectativa das “centenas de amigos, colegas e fãs” que compareceram à cerimônia. Mas que, no fim das contas, o que se viu foi “um beijo radiofônico, tão respeitoso e comum como o de qualquer mortal”, relatou Autuori.

    Foto a foto, o casamento de Ismael Netto e Heleninha Costa / Diário da Noite (08-12-1951)

    Com seu canto correto, valorizado por uma emissão límpida e vibratos bem colocados, Heleninha Costa tornou-se também uma das vozes recorrentes na obra de Ismael Netto, como se pode ouvir em outro bolero, “Voltarás” (dele com José de Arimatéia), no ótimo samba “O Rio amanhecendo” (com Antônio Maria) e no samba-canção “Está fazendo um ano” (com Manoel Araújo), no qual faz dueto com o radialista César de Alencar. “Na interpretação, Heleninha Costa defende muito bem a sua parte, mas Cesar de Alencar mostra sua inadaptação a este tipo de samba, desafinando inúmeras vezes”, avaliou a crítica do Correio da Manhã (11-09-1952). “Mas Cesar de Alencar tem bastante popularidade e o disco está salvo comercialmente.”

    Outras vozes femininas deram vez a sua produção eclética de compositor. Como Olivinha de Carvalho, que valoriza – com entonação sapeca – a marchinha “Se eu fosse a Eva” (de Ismael com Nestor de Hollanda), lançada num dos discos mais vendidos do carnaval de 1952 segundo a seção Chacrinha Musical, escrita por Abelardo Barbosa na Revista do Rádio (15-01-1952). Já Marlene, juntamente com Ivon Cury, são os “intérpretes ideais” de “Suspiro que vai e vem”, “lindo baião de Ismael Netto” (com Manoel Araújo) que a cantora já havia interpretado – com a rival Emilinha Borba! – num evento antes da viagem que fez a Paris, como informou a revista Rádio Entrevista em sua edição de agosto de 1951.

    Também com Os Cariocas, Ismael se multiplicou por três – autor, arranjador e intérprete – para gravar composições suas como “Caminho errado” (em parceria com Paulo Marques) e “Sertão do Pará” (baião com Henrique de Almeida), esta lançada num 78 rpm que, segundo a revista Carioca (17-05-1952), “sem dúvida é um disco credor de encômios”, que, no Caldas Aulete, aprendemos que são elogios ou louvores. E mesmo nas músicas de outros compositores, seus arranjos foram eternizados em grandes sucessos d’Os Cariocas, como o samba “Tim tim por tim tim” (Geraldo Jacques e Haroldo Barbosa), o choro “Comigo é assim” (José Menezes e Luiz Bittencourt) e o foxtrote “Neurastênico” (Betinho e Nazareno de Brito).

    Ismael à frente d'Os Cariocas: Badeco, Quartera, Severino Filho e Waldir Viviani / Reprodução da internet

    Esta última saiu em 1954, ano em que os planetas se alinharam no mapa astral de Ismael Netto — e também no de Antônio Maria. É bem verdade que a parceria com o grande cronista já vinha desde 1953, mas só aqui foi parar na boca do povo. Em ritmo de samba-canção, emplacaram o primeiro sucesso de Dolores Duran, “Canção da volta”, com versos sofridos (“O coração fala muito e não sabe ajudar…”) como a própria vida da artista, abreviada muito antes da hora, aos 29 anos (24-10-1959), num infarto fulminante. Em seu repertório ficaram outras criações da dupla, entre elas o belo choro-canção “Carioca 1954”, cuja letra dialoga com a boemia praticada não só por Dolores, como pelos próprios autores: “Essa noite do Rio / A noite tão boa do Rio / Me toma, me prende em seus braços…”

    Também de 1954 é “Valsa de uma cidade”, um dos hinos informais do Rio de Janeiro, nascido do olhar admirado, melancólico e forasteiro do paraense Ismael e do pernambucano Maria. “Ismael ofereceu-a a Heleninha Costa, sua mulher. Mas Heleninha assistira ao parto da canção e já se cansara de ouvi-la em casa — recusou-a”, conta Ruy Castro no livro “A noite do meu bem — a história e as histórias do samba-canção” (Companhia das Letras, 2015). “O destino natural de ‘Valsa de uma cidade’ seria Dolores, mas, antes que chegasse a ela, caiu nas mãos de Lucio Alves, e foi ele quem a consagrou.”

    Os críticos do jornal A Noite (05-01-1955) escolheram o 78 rpm de Lúcio que trazia a primeira gravação da canção — Continental 16.995 — o disco do ano. “O arranjo é de Radamés Gnattali, que fez a harmonização sob ideia de Ismael”, destacou o crítico Brício de Abreu, autor de um dos textos d’A Noite. “Foi ele o autor da harmonização vocal e o diretor e ensaiador do conjunto vocal que auxiliou Lúcio na gravação.” Ismael e Maria continuaram afiados em 1955, fosse em ritmo de mambo – com “Ai que medo”, lançado por Emilinha Borba – ou de samba, com “Seu nome não é Maria”, na voz de Nelson Gonçalves, e “Madrugada três e cinco” (deles com Reinaldo Dias Leme), cantado por Nora Ney.

    Até que, com Ismael recém-chegado aos 30 anos, 1956 começou da pior maneira possível: após enfrentar um quadro de hepatite em fins de 1955, uma pneumonia em janeiro o levou à internação, da qual não saiu vivo. “Ao findar-se a manhã do dia 31 de janeiro, num quarto do Hospital Gerson de Paula Lima, falecia Ismael Netto, chefe do conjunto Os Cariocas e compositor de sucesso”, informou a Revista do Rádio (18-02-1956), aventando “um mal do fígado” como causa mortis, mas sem precisão. “Nada parecia indicar nele qualquer enfermidade mais séria”, dizia o obituário, desconhecendo o que os mais próximos sabiam.

    “Os descuidos com a vida haviam chegado a tal ponto que à pergunta sobre a causa de sua morte dizia-se: Ismael morreu de tudo”, aponta Zuza Homem de Mello em seu “Copacabana: a trajetória do samba-canção”. Já em “A noite do meu bem – a história e as histórias do samba-canção”, Ruy Castro conta que “ele saiu direto de uma hepatite mal curada para os chopes com genebra no Bar do Zica, indiferente ao fato de que seu fígado lhe mandará uma carta de demissão. Para surpresa geral, não foi isto que o matou. No começo do ano seguinte, foi atacado por uma pneumonia e já entrou em pré-coma no hospital, morrendo em meia hora. Ismael era diabético e não sabia.”

    A capa da homenagem fonográfica d'Os Cariocas – já com Hortênsia na formação – ao fundador do conjunto, lançada pela gravadora Columbia em 1957.

    No sepultamento , realizado no Cemitério São João Batista, em Botafogo, havia quem desse como certo o fim das atividades d’Os Cariocas. “Mas eis que surge Hortênsia, irmã de Ismael, e o substitui no conjunto”, informou Sérgio Porto, no Diário da Noite (20-03-1956). “Vocês devem estar lembrados de que Ismael fazia, no conjunto, a voz mais aguda. Severino Filho foi escolhido para dirigir o conjunto.” No primeiro 78 rpm com a nova formação, lançado em junho de 1956, o samba “Parceria” (mais um com Antônio Maria) era a primeira de muitas homenagens d’Os Cariocas a seu fundador.

    Outra importante veio em 1957, quando a Columbia levou às lojas de música o LP “Os Cariocas a Ismael Netto”, em cuja capa o quinteto aparece com uma foto do homenageado, nas mãos de Hortênsia. Do mesmo ano foi a primeira gravação do samba-canção “Era bom”, mais uma parceria com Antônio Maria que o amigo e admirador Lúcio Alves tirava do ineditismo. E Tom Jobim, outro fã confesso de Ismael, compareceu como arranjador e pianista da regravação da “Canção da volta” por Elizeth Cardoso, que assim ganhava mais um sucesso em seu repertório.

    “Meu bom Ismael, a sua morte estava completamente fora de programa”, escreveu o amigo e parceiro Reinaldo Dias Leme, na Revista do Rádio (14-04-1956). “Dos seus amigos você tem a saudade dentro da lembrança mais comovida. Eis porque na ‘Canção da volta’, que sabemos de cor, resolvemos trocar a letra para repetirmos com ternura ‘que o seu lugar é aqui’, ‘faz de conta que você não saiu...’”

    De certa forma, não saiu mesmo. Seguiu não apenas nos sucessos que compôs, mas também, e sobretudo, na sonoridade moderna d'Os Cariocas, o conjunto que foi um dos nomes de destaque na bossa nova e, com outras formações, estabeleceu-se como um dos mais longevos na história da música popular brasileira.

    Imagem principal: rara foto solo de Ismael Netto, do Acervo José Ramos Tinhorão / IMS

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