Por Bia Paes Leme, Fernando Krieger e Pedro Paulo Malta
Pedro Paulo Malta: Meia década! Lá se vão cinco anos desde aquele novembro de 2019 em que a Discografia Brasileira, até então uma publicação impressa do longínquo ano de 1982, transformou-se no sítio virtual em que você navega neste instante. Uma plataforma digital nascida daquele livraço de cinco volumes (já então uma referência na história dos discos no Brasil) que, adaptada aos novos tempos, ficou mais acessível e divertida para quem acessa: além de todas as informações sobre os discos de 78 rpm lançados no Brasil (mais de 35 mil, entre 1902 e 1964), pode-se ouvir boa parte deles.
Quem por aí ainda não se perdeu neste repertório inesgotável? Este redator aqui, por exemplo, incumbido que é de produzir textos sobre temas diversos da Discografia Brasileira, não se cansa de se surpreender com a descobertas que aparecem pelo caminho. Como o vozeirão de João Gilberto em suas primeiras gravações, lá em 1951, quando era crooner dos Garotos da Lua e, antes do banquinho e do violão, cantava até bolero, como “Quando você recordar”. Pois saiba, leitora ou leitor, que a cada post que você lê assinado por Pedro Paulo Malta, ali está o resultado da curiosidade e da alegria de desencavar boas histórias pra você. Imagino que não seja diferente com o outro redator deste nosso túnel do tempo — certo, Fernando Krieger?
Fernando Krieger: Certíssimo, grande Pedro Paulo Malta! Muita alegria fazer parte dessa história junto com você e com a nossa querida Bia Paes Leme, coordenadora do setor de Música do Instituto Moreira Salles. É uma delícia fazer as pesquisas, escrever os textos e escutar as gravações desse repertório seminal da nossa música. E descobrir as muitas e muitas raridades. Como a gravação original – dada como perdida – do samba “Camisa listada”, do Assis Valente, que a incrível Carmen Miranda imortalizou, mas cuja estreia em disco se deu pelas vozes das Irmãs Pagãs. Uma preciosidade resgatada por outra pessoa fundamental nessa nossa Discografia Brasileira: o pesquisador Miguel Ângelo de Azevedo, o Nirez.
PP: Pois é... Nirez é uma figura fundamental não só aqui para esta Discografia Brasileira, como também para a discografia brasileira, a do país, por tudo que já pesquisou e conhece de música e das gravações de antigamente. Você, que já esteve na casa-museu onde ele vive há tantos anos, em Fortaleza, certamente guarda boas memórias de lá. Mas eu, que conversei com ele por telefone para o especial que fizemos em homenagem aos 90 anos dele, em maio deste ano, já pude ter uma boa ideia de seu bom humor e de sua paixão por contar histórias e ouvir valsas - como "Meu destino", "a mais bonita de todas". Aliás, sabia que a Terezinha, filha dele, me telefonou dia desses pra contar que Pretinha, a gatinha que Nirez adorava, morreu...?
FK: Puxa vida, não sabia. Eu conheci a Pretinha quando estive lá em 2015. Meio arisca, não tive coragem de chegar muito perto, apesar de adorar gatos. Deixei-a sossegada no cantinho dela. Pois é, fizemos algumas homenagens ao Nirez, desde o meu primeiro texto para a Discografia, em 2019, até nossos posts recentes neste 2024, pelos seus 90 anos. Aliás, que bom termos conseguido sempre homenagear – e por vezes entrevistar – nossos mestres, os pesquisadores e colecionadores que ajudaram a contar a história da nossa música: Jairo Severiano, Hermínio Bello de Carvalho, Rachel Valença, Rosa Maria Araújo, Sérgio Cabral, Carlos Monte, Zuza Homem de Mello, Rodrigo Faour, Rodrigo Alzuguir, Gabriel Gonzaga, Luís Filipe de Lima, Marília Trindade Barboza... Que timaço! Além dos (guerreiros) colecionadores de discos que ensejaram a criação de uma série própria. E quantas personalidades importantes da nossa música você conseguiu entrevistar!
Pesquisadores e seus xodós: Nirez posando com a gata Pretinha (em foto de seu acervo familiar) e Jairo Severiano afinando o violão (foto de Pedro Paulo Malta)
PP: Pois é, dessas aí me lembro especialmente da entrevista com Jairo Severiano, outro querido pesquisador, que me recebeu em seu apartamento, em Ipanema, para a entrevista que originou o texto e a playlist com suas "dez mais", que foram ao ar entre os primeiros posts deste site. O ponto alto da conversa foi quando, lá pelo meio da lista, ele se levantou e foi ao quarto buscar o violão: queria mostrar ao vivo "Helena, Helena", um de seus sambas preferidos desde a infância, quando começou a gostar de música brasileira, aliás, na mesma Fortaleza de Nirez. Aliás, nunca é demais lembrar que os dois fazem parte do "quarteto fantástico" (com Gracio Barbalho e Alcino Santos) da pesquisa que deu origem à “Discografia Brasileira em 78 rpm (1902-1964)”, a edição impressa de 1982 que serviu de base para nosso site.
FK: Acho que só fiz uma entrevista nesse período, mas ela me trouxe a felicidade de ter conhecido a queridíssima Carla Guagliardi, filha do grande Carlos Galhardo! Foi emocionante estar no mesmo apartamento onde um dos nossos maiores cantores viveu, em Copacabana. E a Carla me dá a imensa alegria de até hoje nós nos comunicarmos via WhatsApp. Acho que não tem um dos grandes do passado que tenhamos deixado de fora: Galhardo, Francisco Alves, Mário Reis, Silvio Caldas... E as incríveis e maravilhosas cantoras, que vozes! Muito bom poder falar sobre Carmen Miranda, Elisinha Coelho, Aracy de Almeida, Marília Batista, Dalva de Oliveira, Dircinha Batista, Nora Ney, a divina Elizeth Cardoso, a fantástica Inhana, Marlene e Emilinha Borrrrrba, Elsie Houston, minhas ídalas Adelaide Chiozzo, Celly Campello e Carmélia Alves... E descobrir gravações que eu não conhecia, como o sambão “Vou lhe matando devagar”, da cantautora Dora Lopes.
PP: Você falou em ídalas e, não sei por quê, me lembrei de um telefonema despretensioso que rendeu um post por aqui em setembro de 2021: do outro lado das ondas sonoras e eletromagnéticas estava simplesmente Alaíde Costa, que, com sua voz de menina, me deu trela num papo sobre seu início de carreira. Relembrou as noites de cantoria nos dancings, a amizade com João Gilberto e sua estreia fonográfica, em 1956, quando gravou “Tens que pagar”, composição sua com o discotecário Airton Amorim. Com seu canto macio e delicado, Alaíde já era bossa antes da invenção de João, Vinicius e Tom.
FK: Aliás, por falar no João, lembro do ótimo bate-papo que você teve sobre ele com a Bebel Gilberto, cheio de boas lembranças. E as conversas deliciosas com as saudosas Leny Andrade e Dóris Monteiro. Com os também bossa-novistas Carlos Lyra e Roberto Menescal. Com Dori Caymmi. Com o Pedro Miranda, sobre a Aracy de Almeida. Com o grande bandolinista Izaías Bueno de Almeida, do lendário Conjunto Atlântico, de São Paulo, e com o também lendário pianista Arthur Moreira Lima, sobre Nazareth. Com outra pianista espetacular, Maria Teresa Madeira, sobre a colega e amiga Carolina Cardoso de Menezes. Com Jorge Roberto Martins, filho do grande Roberto Martins, e com Roberto Barbosa, neto de Orestes Barbosa. Rapaz, que currículo, hein? Já pensou em fazer jornalismo? (Hehe)
Dessas todas, tenho especial afeição pela entrevista que você fez com João Roberto Kelly, lenda do Carnaval – que é um tema muito caro para mim, folião que sou. De uma maneira ou de outra, sempre acabo falando sobre o tema nos meus textos – e, claro, colocando alguma marcha ou frevo na playlist. Uma música de Carnaval que eu adoro – dentre incontáveis outras – é a marchinha “Lancha nova”, parceria do João de Barro com o Antônio Almeida, numa linda gravação do Nuno Roland (que já foi tema de post aqui nesse espaço) com acompanhamento do Trio Melodia. Muito cantada nos antigos Carnavais, hoje é praticamente desconhecida, assim como seu intérprete. Eu gosto muito desse aspecto do nosso trabalho: o resgate de canções e de personagens da história da MPB outrora muito famosos, hoje praticamente esquecidos.
PP: A propósito desses resgates, me lembro de um trio de posts seus com os quais aprendi muito: um deles sobre “Maringá”, a canção de Joubert de Carvalho que deu nome a uma cidade no Paraná; outro sobre a cantora eclética e cult Elsie Houston; e ainda um terceiro sobre “o velho Raul Moraes”, maestro pernambucano citado em “Evocação nº 1”, o frevo dos frevos composto pelo grande Nelson Ferreira (tema de outro post seu) que virou um emblema do carnaval. Aliás, na nossa divisão de pautas, pode-se dizer que o amigo virou uma espécie de setorista do carnaval de Recife e Olinda. Confere…?
FK: Haha, virei mesmo! Raul Moraes, Luiz Bandeira, Capiba... Até quando escrevi sobre o Antônio Maria, foquei nos frevos que ele compôs. Também adorei fazer o texto sobre o Dia Nacional do Frevo. E já vou colocar na playlist um que eu acho fantástico, o “Frevo no Bairro do Recife”, do Nelson Ferreira. Acho que me tornei um pouco setorista do Nordeste em geral – neto de paraibano que sou, com muito orgulho! Escrevi sobre (ou fiz “biografias” de músicas de) Luiz Gonzaga, Humberto Teixeira, Zé Dantas, Jackson, Almira Castilho, Sivuca, João Pernambuco... e também de Gordurinha, autor do pungente “Pedido a Padre Cícero”, que fala da seca que sempre assolou o Nordeste – tema do qual a gente trata vez por outra, como foi o caso dos posts sobre “Maringá”, citado por você, e sobre “Asa branca”.
O cangaceiro Lampião numa xilogravura de J. Borges
PP: E teve o post sobre Lampião em que você, caprichando nos pingos nos is, despe o velho cangaceiro da capa de Robin Hood — assim floreado na rancheira “Vida de Lampião” — e o aproxima de Jack The Ripper. Pois foi também movido a paixão e um certo olhar crítico sobre a história que fiz um post sobre a “Praça Onze”, demolida no começo da década de 1940, para a construção Avenida Presidente Vargas. O próprio Getúlio, então ditador do país, não teve qualquer remorso em varrer do mapa mais de mil construções (entre elas igrejas do século 17) para ver seu nome na nova avenida — até hoje menos habitada, passeada e humanizada do que se esperava.
FK: Eu ia falar justamente desse seu texto sobre a Praça Onze, uma aula de história! E o da Penha é irretocável! Esse último sobre o Monsueto tá cheio de ginga. Acho que já te falei o quanto eu aprendo quando leio os seus posts. Fora os que você fez sobre o Copacabana Palace, o Santos Dumont (não o aeroporto, mas o inventor do avião), a Torre Eiffel... Assuntos que, a princípio, parecem não ter nada a ver com música popular, mas a gente mostra que têm sim! E as nossas playlists estão aí para provar. Eu particularmente adoro esses temas mais inusitados. Foi um barato escrever sobre as sandálias de prata, os 75 anos do biquíni, a dobradinha Modernismo/Futurismo, o clássico filme “Cantando na chuva”, o Dia do Filósofo, os 100 anos da Disney... E, claro, o post “dos infernos”! Não resisti e coloquei na playlist o frevo “Diabinho de saia”, do mestre Levino Ferreira, interpretado pelo conjunto do Pixinguinha, os... Diabos do Céu!
PP: Ah, sim! E ainda tem Pixinguinha, o multitemático. Nesses cinco anos, o mestre do choro, da flauta, do sax e dos arranjos brasileiros foi tema ou personagem de alguns posts aqui no site — um deles quando completaram-se 50 anos da morte dele (em fevereiro de 2023), outro quando saiu sua biografia mais recente, escrita pelo querido José Silas Xavier, e ainda um sobre a turnê argentina dos Oito Batutas, quando o famoso conjunto fez as únicas gravações em sua história — 20 no total, entre elas a primeira de “Graúna”, o famoso choro de João Pernambuco. Aliás, até cantar Pixinguinha já cantei por aqui, quando nossa Bia Paes Leme me confiou a tarefa de gravar — en français, veja que cara de pau a minha, o maxixe inedito “Batutas”.
O onipresente Pixinguinha e a capa da partitura do maxixe Batutas (Imagens do acervo IMS)
FK: Você joga nas onze! Aliás, me impressiona a quantidade de músicos polivalentes que brincaram de tudo o quanto é jeito: cantando, tocando, compondo, fazendo arranjos, criando melodia e letra, às vezes tudo ao mesmo tempo. Falei um pouco sobre isso no post sobre o Dia do Compositor. Pixinguinha – que gravou com seu grupo, em 1919, o clássico “Os Oito Batutas” –, é um exemplo dentre dúzias que existem na nossa música popular. Outro é Luiz Gonzaga: cantor, compositor e instrumentista, ele também passeava com facilidade por gêneros musicais distintos. O Rei do Baião começou tocando polcas, valsas, mazurcas, choros – mas não deixava de lado sua origem nordestina. Como se vê em “Araponga”, um choro que tem uma pitadinha de baião lá no fundo. Essa mistureba bem chiclete com banana dá um tempero especial à nossa MPB, não concordas?
PP: Imagine se não! Sua frase, não sei por que, me fez lembrar de Jackson do Pandeiro e um post que escrevi sobre o disco de estreia dele. Mas gostei mais da história da mistureba, necessária não só à MPB, como a qualquer música popular que se preze, né? Não há chatice (ou ingenuidade) maior do que a defesa do samba — ou qualquer gênero popular — puro. Sendo assim, minha homenagem aos puristas vem com a lembrança de um post que fiz sobre o repertório estadunidense gravado pelos brasileiros e também com “Boogie woogie na favela”, samba híbrido de Denis Brean que fez sucesso na voz de Ciro Monteiro.
FK: O paulista (de Campinas) Denis Brean! E eu vou aproveitar a deixa para fazer um samba em homenagem à nata da malandragem de São Paulo, terra da garoa e de grandes sambistas, que estamos sempre reverenciando por aqui: Adoniran Barbosa, Paulo Vanzolini, Vadico – parceiro de Noel Rosa –, Vassourinha, Agostinho dos Santos, Germano Mathias, Isaurinha Garcia, Risadinha... Sem falar na turma da música caipira (a autêntica), que em nossos posts se fez representar (até agora) por grandes nomes como Inhana (da dupla com Cascatinha), Teddy Vieira, Inezita Barroso e Cornélio Pires.
Não posso deixar de lembrar dos pioneiros das gravações de macumbas em disco, tão perseguidos nos tempos de outrora (será que as coisas seriam diferentes hoje em dia?). Nosso axé e toda a nossa reverência aos fenomenais J. B. de Carvalho, Getúlio Marinho, João da Baiana, Elsie Houston e tantos outros que um dia ainda haveremos de biografar nessas páginas. Como o lendário Zé Espinguela, o Pai Alufá, que deixou poucos mas vigorosos registros sonoros, entre estes a “Macumba de Inhansã”, gravada num navio atracado no Rio de Janeiro em 1940 e depois lançada nos Estados Unidos num dos discos da incensada série de 78 rotações intitulada “Native brazilian music” – música brasileira que, na modesta opinião deste redator, continua sendo a melhor do mundo!
PP: Na minha também, meu caro. Como diz o samba, "brasileiro na batata é que tem valor". Será que nossa Bia Paes Leme pensa da mesma forma?
Bia Paes Leme: Claro! E acho que é isso que move o nosso trabalho. Pedro Paulo e Fernando, é um prazer entrar nessa conversa – ainda que vocês tenham deixado só 5 músicas pra mim rsrs... Mas tudo bem. Afinal, nosso site está completando 5 anos de atividade, e é muito bom rever esse rico conteúdo que vocês produziram, com pesquisa consistente, textos saborosos e playlists reveladoras. Muito obrigada!
Vou dar, então, meus 5 pitacos:
“A baiana dos pastéis” é uma cançoneta de Chiquinha Gonzaga, da revista "O Esfolado", gravada em 1910 pela cantora e atriz Risoleta, com acompanhamento de piano, possivelmente da própria Chiquinha. Gosto da música, da execução, gosto de tudo.
“Chalréo” é um lundu composto e interpretado por Otávio Vianna, o China, irmão de Pixinguinha. Ele é acompanhado do Choro Carioca, que a essa altura (1914) tinha o próprio Pixinguinha (na flauta), Bonfiglio de Oliveira (no trompete) e Álvaro Sandim (no trombone). Os sopros dão conta de todo o acompanhamento harmônico e rítmico.
“Dona Clara”, samba de Donga e João da Baiana, me fascina pelo canto brilhante de Patricio Teixeira e pelo acompanhamento dos dois violões ponteados. Uma alegria!
“Escovado”, tango brasileiro de Ernesto Nazareth, interpretado pelo autor. O espírito do tango brasileiro em sua mais pura expressão e minha declaração de amor ao Nazareth e à sua música.
“Chorei” foi gravado por Pixinguinha – assim como o outro lado do disco Odeon 12151, “Os Cinco Companheiros” – em junho de 1940. O lançamento só aconteceu quase dois anos depois, em maio de 1942. O que me encanta é que ele escreveu, para os dois choros, lindos arranjos para três flautas, e essas são possivelmente suas últimas gravações nesse instrumento. Não sabemos quem foram os outros dois flautistas.
FK: O que sabemos é que nós temos disposição para mais cinco anos – ou dez, ou vinte, ou mais – de textos e playlists: o baú da música brasileira não tem fundo!
Na foto principal: discos de 78 rpm do acervo do Setor de Música do Instituto Moreira Salles. Foto: Fernando Krieger.